Tertuliano seguiu para a sua sala de aulas e logo os alunos souberam que o atraso não significava suspensão das atividades...
Ele anunciou que fariam um último trabalho escrito na quinta-feira. E a tarefa exigia cuidado! Ela teria peso na definição da nota final! Faltavam apenas duas semanas para o fim do ano de estudos... O professor se mostrava disposto a revisar conteúdos, e adiantou que era bom que os estudantes se dedicassem. Só assim chegariam mais preparados às avaliações finais...
Os bons entendedores saberiam com antecedência, pela própria ênfase dada pelo mestre, os pontos que deviam estudar.
Os que já comemoravam a possibilidade de folgar com a ausência do professor começaram a avançar sobre o material didático.
(...)
A aula estava para acabar quando um funcionário bateu
à porta... Pediu licença e comunicou que o diretor o esperava em seu gabinete.
O professor que estava falando sobre certo tratado histórico dispensou
poucos minutos para o assunto e tranquilizou a moçada ao garantir que aquilo
não seria objeto de questionamentos nos exercícios que ocorreriam dali a três
dias.
Antes de chegar à sala do chefe, Tertuliano topou com
a professora de Literatura que teve tempo de dizer-lhe que sentia falta de
dicionários com significações mais esclarecedoras sobre as expressões
coloquiais... A mulher voltou a falar do “amarrar o burro” e emendou que “seria
preciso ir mais longe” e “identificar nos diversos componentes da expressão as analogias,
diretas e indiretas, com o estado de espírito que se quis representar”.
Tertuliano disse que ela tinha toda razão... Pediu desculpa por não poder
prolongar a conversa porque o diretor o aguardava.
(...)
Bateu à porta e aguardou que a “luz verde” se acendesse...
Cumprimentaram-se... Tão logo o chefe sinalizou, sentou-se na
poltrona... A atmosfera parecia tranquila... Tertuliano não notou “nenhuma
presença intrusa”.
O diretor disse que tinha uma “tarefa de férias” para o seu professor...
Lamentou o inconveniente de intrometer-se em seu período de descanso, mas
esperava que ele considerasse.
A tarefa relaciona-se às
ideias de Tertuliano sobre o ensino de História... De fato, o diretor estava
pensando na “revolucionária abordagem”. E demonstrando que estava plenamente de
acordo com o projeto, disse que pretendia encaminhá-lo ao Ministério da Educação.
Obviamente o diretor não
esperava que o ministro acolhesse a “reviravolta”... Todavia entendia que uma
apresentação bem fundamentada podia convencê-lo a aplicar as mudanças
paulatinamente... Provavelmente fizesse uma experiência piloto numa escola...
Talvez com um pequeno grupo de alunos... Alguns voluntários...
O homem estava mesmo
empolgado... Esperava ver os resultados da prática de um ensino de História
estruturado do presente para o passado...
(...)
Tertuliano quis saber em quê consistiria o trabalho que tinha de
desenvolver. O diretor disse que esperava que ele elaborasse o texto da
proposta que deviam apresentar ao Ministério.
O professor colocou-se na
defensiva, mas o diretor sustentou que em sua opinião ele era o “mais habilitado”
da escola para assumir o encargo. O tipo disse uma série de elogios ao
Tertuliano, alguém que refletia incansavelmente sobre a matéria e que possuía “ideias
claras”.
Ele não precisava se preocupar porque a escola
providenciaria a remuneração à altura da tarefa. Tertuliano o interrompeu
dizendo que tinha dúvidas se a qualidade (e mesmo a quantidade) de suas ideias
teria peso para convencer o ministro... O diretor o conhecia bem!
Não era bem assim... O diretor explicou que não conhecia tão bem o
ministro... Mas insistiu que aquele momento era propício para marcarem
posição... Podiam mostrar que de sua escola saíam “ideias inovadoras”.
Tertuliano respondeu que provavelmente não dariam a mínima pelas propostas
pedagógicas.
O chefe argumentou que podia ser que arquivassem
o projeto... Mas um dia alguém o encontraria, refletiria sobre sua viabilidade
e o colocaria em prática.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/10/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_8.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto