Tertuliano pensou que podia contar tudo à Maria... Falar-lhe a respeito da extraordinária história talvez trouxesse um pouco de entendimento aos dois... Talvez suas atitudes marcadas pela grosseria fossem perdoadas por ela.
Provavelmente Maria lhe daria conselhos que o levassem a desistir da empreitada... Diria que ele não podia esperar nada mais do que fatalidades... Essas coisas. Pode ser que quisesse saber se ele já colocara a mãe a par da situação... Ele responderia que ainda não... Então Maria se mostraria disposta a ajudá-lo no enfrentamento de seu drama.
(...)
Mas não foi bem isso o que ocorreu...
O jantar foi silencioso... Logo o garçom apareceu para
saber se desejavam mais alguma coisa... Tertuliano aceitou um café e pediu a
conta. Os olhos de Maria já não denunciavam lágrimas.
O carro levou-os à rua onde Maria morava... Tertuliano desligou o motor.
Sem olhar diretamente nos olhos dela, começou a dizer que tudo o que ele lhe
falara nas últimas semanas, e isso incluía a conversa que tiveram no jantar,
era mentira...
Ela espantou-se... A voz de Tertuliano era tensa
enquanto prosseguia dizendo que não adiantava ela perguntar a respeito da
verdade porque ele não teria como respondê-la.
Maria concluiu que ele não buscava “esclarecimentos estatísticos” da
produtora de filmes... O rapaz confirmou. Era assim mesmo. Ela emendou que,
então, não adiantaria nada perguntar-lhe a respeito do real motivo que o levara
àquele projeto.
Mais uma vez Tertuliano confirmou. Evidentemente Maria prosseguiu
refletindo a respeito do que acabava de ouvir... Perguntou se a situação tinha
a ver com as fitas de vídeo que ela mesma verificara em seu apartamento.
Tertuliano sugeriu que ela devia se contentar com as informações que ele
lhe passara... Não adiantava questionar ou fazer suposições... Ela respondeu
que de fato não faria perguntas, mas era inevitável que fizesse suposições...
Não seria de estranhar que algumas fossem bem “disparatadas”.
Ele observou que a revelação que acabara de fazer não a deixara
surpresa... Maria argumentou que em algum momento ele teria de dizer-lhe...
Evidentemente não esperava que o fizesse naquela mesma noite.
Tertuliano quis saber por
que ela considerava que “certamente” ele acabaria lhe contando... Maria
explicou com sinceridade que o considerava mais honesto do que ele mesmo se julgava...
Ele observou que não era bem do jeito que ela estava dizendo... Tanto é que não
conseguia contar-lhe toda a verdade.
Para Maria não se tratava
de uma questão de honestidade... Havia um problema que afligia o namorado, e
era isso o que o impedia de falar.
O próprio Tertuliano
quis que ela explicasse o que seria aquilo. Então Maria disse que talvez se
tratasse de alguma dúvida, algo angustiante ou um temor...
Ele quis saber em quê ela se embasava para fazer aquele tipo de
afirmação... Ela respondeu que percebia tudo em sua fisionomia e nas palavras
que proferia.
Tertuliano objetou ao dizer
que havia mentiras em suas palavras... Maria explicou que se referia ao modo
como suas palavras soavam.
Ele brincou com a ideia de imitar os políticos ao
dizer que “nem confirmava nem desmentia”... Maria afirmou que aquele expediente,
um truque de “baixa retórica”, não enganava a ninguém... E garantiu que a frase
tendia “mais para o lado da confirmação do que para o desmentido”.
(...)
E não é que o final da noite estava dando em proveitoso?
Mais uma vez Tertuliano se surpreendera com a
inteligência de Maria.
Pararam com o “jogo de palavras”... Tertuliano se referiu ao choro dela
durante o jantar e pediu desculpas... Ela disse que ao “saber da metade do que havia
para saber” estava se sentindo melhor e não podia se queixar.
Tertuliano observou que apenas havia confessado que mentira... Ela respondeu
que “essa metade” contribuiria para que sua noite de sono fosse melhor.
Ele advertiu que talvez ela perdesse totalmente o sono se soubesse da
outra metade.
Isso assustou Maria da Paz... Mas ele a acalmou ao citar a frase da mãe
sobre como “tudo acaba por se resolver”.
Maria pediu-lhe que tomasse
cuidado... Ele prometeu isso e também que contaria o resto de seus segredos em
ocasião oportuna.
Ela garantiu que esperaria.
Deu-lhe um beijo e se preparou para sair... Mas neste momento ele segurou-a
pela mão e sugeriu que fossem para a sua casa.
Maria respondeu que
já estava agraciada com o que ele havia lhe contado... Tertuliano perguntou se
faria diferença se lhe contasse o resto ainda naquela noite.
(...)
Resoluta, Maria abriu a porta e disse que nem mesmo essa possibilidade a
faria seguir com ele.
Sorriu e retirou-se do
veículo.
Tertuliano funcionou o carro...
Aguardou que ela desaparecesse no prédio.
Na sequência dirigiu no rumo de seu apartamento,
onde a solidão o aguardava.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/10/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_17.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto