Ao ficar a sós com Tertuliano, o colega de Matemática disse que podia esperar qualquer tipo de reação de sua parte... Menos os ares de atormentado... Principalmente porque ele mesmo havia garantido que passara um fim-de-semana na paz.
O professor de História garantiu que o de Matemática estava equivocado... Sua impressão não correspondia à realidade. É claro que sua fisionomia devia revelar o pouco sono...
O colega disse que não se convencia... Tinha a impressão de que Tertuliano estava muito diferente desde que assistira ao “Quem Porfia Mata Caça”.
Tertuliano se espantou e quis que o colega se explicasse melhor... Ele estava querendo dizer que “não se parecia o mesmo”? Pôs-se a explicar que era ele o mesmo professor de História conhecido de todos... Notavam algo diferente nele? Só podia ser devido a certos assuntos de “ordem sentimental” que precisavam ser resolvidos. Era só isso! De modo algum se tornara outra pessoa!
(...)
A agitação de Tertuliano era perceptível... O de Matemática respondeu
que não tinha a menor dúvida de que estava a conversar com Tertuliano Máximo
Afonso, professor de História naquela unidade escolar.
O de História insistiu em saber, então, por que o de
Matemática insistia em afirmar que ele “não parecia o mesmo”... Neste ponto, o
colega voltou a se referir ao filme que ele havia indicado... Tertuliano se
irritou ao dizer que o outro já sabia a sua opinião a respeito do filme, e que
não era sobre isso que pretendia falar...
O de Matemática sabia a opinião dele a respeito da fita... Tertuliano
pediu que ele ao menos se lembrasse de seu estado depressivo. Marasmo era a
palavra que utilizara quando conversaram...
Até por consideração, essa sua condição devia ser respeitada... Mas é
claro que não era esse o caso... O de Matemática garantiu que o respeitava...
Tertuliano voltou à carga repetindo que “ainda era o mesmo”...
Com tanta insistência, não foi difícil o colega notar o estado alterado...
Tertuliano falou novamente sobre sua condição de tensão psicológica e tentou
explicar que, devido a ela, até mesmo a sua fisionomia podia se alterar
eventualmente.
Ao Tertuliano parecia muito importante que o outro admitisse de uma vez
por todas que “ele era o mesmo de sempre”... Ainda mais uma vez repetiu que não
era porque sua fisionomia se alterasse (por causa de seu marasmo) que ele se passava
a se parecer outra pessoa... Moral e fisicamente ele continuava o mesmo!
Visivelmente cansado
daquela conversa, o de Matemática explicou que se limitara a dizer que o colega
“não parecia o mesmo”... Tentou ser incisivo ao garantir que não quisera dizer
que ele “se parecia com outra pessoa”.
Mas Tertuliano parecia
estar abalado com o outro sentido que as palavras do de Matemática podia
esconder. Por isso disse que não era grande a diferença entre as duas fórmulas
apresentadas pelo interlocutor (“não se parecer o mesmo”; “se parecer com outra
pessoa”).
(...)
O outro citou a
colega de Literatura, que podia esclarecê-lo a respeito... Disse ainda que
Literatura e Matemática têm certas semelhanças no que diz respeito às suas
sutilezas e matizes... É claro que Tertuliano não podia deixar de notar que essas
“propriedades” não existem na História.
O colega de Matemática disse que tudo seria diferente “se a História
pudesse ser o retrato da vida”. Tertuliano observou com admiração que ele
estava sendo retórico... O tipo continuou dizendo que “a História não seria a
vida”, mas “um dos possíveis retratos dela”... Os retratos seriam sempre
parecidos (com a vida), “mas nunca iguais”.
Essas palavras fizeram
Tertuliano estremecer... Ele desviou o olhar para um ponto indeterminado...
Precisava observar o rosto do de Matemática, conferir se havia serenidade e se
era possível detectar alguma intenção escondida.
O de Matemática mantinha o rosto firme... Sequer
podia-se dizer que prestava atenção a algo...
Sorriu e disse que não seria má ideia assistir novamente à comédia. Tentaria
descobrir se havia alguma relação entre a fita e a condição transtornada do
colega.
Tertuliano quis desviá-lo da possibilidade ao
recomendar que não perdesse o seu tempo, dado que seu transtorno tinha a ver
com um relacionamento do qual não sabia como sair... Disse isso e emendou que o
adiantado da hora o obrigava a se encaminhar para a sala de aulas.
(...)
O de Matemática brincou sobre acompanhá-lo até o corredor... Garantiu
que não cometeria o inconveniente de colocar a mão sobre o seu ombro... Tertuliano
disse que provavelmente essa seria uma ocasião em que não se importaria se o
fato se repetisse...
O outro garantiu que não queria correr riscos, pois era notório que o companheiro
tinha o aspecto daqueles que andam “com as pilhas carregadas até à rolha”.
Os dois deram risadas... O riso de Tertuliano não era espontâneo... Em
seu interior havia pânico... Lembrava-se das palavras do colega... Elas eram
ameaçadoras.
Depois de alguns passos, cada um seguiu para a
sua sala.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/10/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_7.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto