segunda-feira, 3 de outubro de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – Tertuliano não conseguiu esconder seu estado de agitação; necessidade de convencer ao outro que “ainda sou a mesma pessoa”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/10/o-homem-duplicado-de-jose-saramago.html antes de ler esta postagem:

Ao ficar a sós com Tertuliano, o colega de Matemática disse que podia esperar qualquer tipo de reação de sua parte... Menos os ares de atormentado... Principalmente porque ele mesmo havia garantido que passara um fim-de-semana na paz.
O professor de História garantiu que o de Matemática estava equivocado... Sua impressão não correspondia à realidade. É claro que sua fisionomia devia revelar o pouco sono...
O colega disse que não se convencia... Tinha a impressão de que Tertuliano estava muito diferente desde que assistira ao “Quem Porfia Mata Caça”.
Tertuliano se espantou e quis que o colega se explicasse melhor... Ele estava querendo dizer que “não se parecia o mesmo”? Pôs-se a explicar que era ele o mesmo professor de História conhecido de todos... Notavam algo diferente nele? Só podia ser devido a certos assuntos de “ordem sentimental” que precisavam ser resolvidos. Era só isso! De modo algum se tornara outra pessoa!
(...)
A agitação de Tertuliano era perceptível... O de Matemática respondeu que não tinha a menor dúvida de que estava a conversar com Tertuliano Máximo Afonso, professor de História naquela unidade escolar.
O de História insistiu em saber, então, por que o de Matemática insistia em afirmar que ele “não parecia o mesmo”... Neste ponto, o colega voltou a se referir ao filme que ele havia indicado... Tertuliano se irritou ao dizer que o outro já sabia a sua opinião a respeito do filme, e que não era sobre isso que pretendia falar...
O de Matemática sabia a opinião dele a respeito da fita... Tertuliano pediu que ele ao menos se lembrasse de seu estado depressivo. Marasmo era a palavra que utilizara quando conversaram...
Até por consideração, essa sua condição devia ser respeitada... Mas é claro que não era esse o caso... O de Matemática garantiu que o respeitava... Tertuliano voltou à carga repetindo que “ainda era o mesmo”...
Com tanta insistência, não foi difícil o colega notar o estado alterado... Tertuliano falou novamente sobre sua condição de tensão psicológica e tentou explicar que, devido a ela, até mesmo a sua fisionomia podia se alterar eventualmente.
Ao Tertuliano parecia muito importante que o outro admitisse de uma vez por todas que “ele era o mesmo de sempre”... Ainda mais uma vez repetiu que não era porque sua fisionomia se alterasse (por causa de seu marasmo) que ele se passava a se parecer outra pessoa... Moral e fisicamente ele continuava o mesmo!
Visivelmente cansado daquela conversa, o de Matemática explicou que se limitara a dizer que o colega “não parecia o mesmo”... Tentou ser incisivo ao garantir que não quisera dizer que ele “se parecia com outra pessoa”.
Mas Tertuliano parecia estar abalado com o outro sentido que as palavras do de Matemática podia esconder. Por isso disse que não era grande a diferença entre as duas fórmulas apresentadas pelo interlocutor (“não se parecer o mesmo”; “se parecer com outra pessoa”).
(...)
O outro citou a colega de Literatura, que podia esclarecê-lo a respeito... Disse ainda que Literatura e Matemática têm certas semelhanças no que diz respeito às suas sutilezas e matizes... É claro que Tertuliano não podia deixar de notar que essas “propriedades” não existem na História.
O colega de Matemática disse que tudo seria diferente “se a História pudesse ser o retrato da vida”. Tertuliano observou com admiração que ele estava sendo retórico... O tipo continuou dizendo que “a História não seria a vida”, mas “um dos possíveis retratos dela”... Os retratos seriam sempre parecidos (com a vida), “mas nunca iguais”.
Essas palavras fizeram Tertuliano estremecer... Ele desviou o olhar para um ponto indeterminado... Precisava observar o rosto do de Matemática, conferir se havia serenidade e se era possível detectar alguma intenção escondida.
O de Matemática mantinha o rosto firme... Sequer podia-se dizer que prestava atenção a algo...
Sorriu e disse que não seria má ideia assistir novamente à comédia. Tentaria descobrir se havia alguma relação entre a fita e a condição transtornada do colega.
Tertuliano quis desviá-lo da possibilidade ao recomendar que não perdesse o seu tempo, dado que seu transtorno tinha a ver com um relacionamento do qual não sabia como sair... Disse isso e emendou que o adiantado da hora o obrigava a se encaminhar para a sala de aulas.
(...)
O de Matemática brincou sobre acompanhá-lo até o corredor... Garantiu que não cometeria o inconveniente de colocar a mão sobre o seu ombro... Tertuliano disse que provavelmente essa seria uma ocasião em que não se importaria se o fato se repetisse...
O outro garantiu que não queria correr riscos, pois era notório que o companheiro tinha o aspecto daqueles que andam “com as pilhas carregadas até à rolha”.
Os dois deram risadas... O riso de Tertuliano não era espontâneo... Em seu interior havia pânico... Lembrava-se das palavras do colega... Elas eram ameaçadoras.
Depois de alguns passos, cada um seguiu para a sua sala.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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