Faustino apresenta ainda um registro a respeito de um conto que foi publicado em Tudo por São Paulo, de Horácio de Andrade. Ele nos ajuda a refletir a respeito da crueldade dos conflitos armados e sua incoerência.
(...)
Segue
uma síntese:
Dito e Barnabé eram
soldados que pertenciam a um batalhão da Legião Negra, mas estavam perdidos...
Apartaram-se de seu grupamento nas proximidades de Mato Grosso, onde percorriam
os morros em busca de algum sinal de seus companheiros... Tinham esperança de
encontrar o pelotão, mas era certo que se arriscavam, pois podiam topar com as
tropas inimigas a qualquer momento.
Eventualmente
encontravam um ou outro vivente daquelas bandas. Perguntavam se haviam visto um
“batalhão só de soldados pretos”... Normalmente a resposta era negativa...
Mas
houve uma ocasião em que um carroceiro disse-lhes que ouvira tiroteio na noite
anterior, e que na margem do rio havia muitos mortos...
Os
dois se encaminharam para o local indicado pelo tipo... Ao chegarem se
depararam com incontáveis soldados mortos... Eles pertenciam a um batalhão
inimigo...
O
cenário era deplorável, mas Barnabé não se incomodou com isso e passou a
retirar as botas de um dos cadáveres... Dito estranhou e disse que o amigo só
podia estar louco, depois indagou se ele não tinha medo de assombrações...
Barnabé
se explicou... Falou que as botas não tinham mais nenhuma serventia aos
defuntos... Disse também que não fazia sentido permanecerem com botas tão
pesadas e ruins já que havia tantas à disposição... Tratou de trocar as que
calçava e tomou posse de outros dois pares que poderiam ser negociados mais
tarde.
Barnabé
estava acostumado... Fizera a mesma coisa durante as revoluções de 1924 e de
1930... Lamentava apenas nunca ter encontrado generais mortos (esses morrem
adoentados na cama), pois certamente conseguiria indumentárias e equipamentos
ainda melhores.
(...)
Para Dito, aquela atitude do companheiro apenas
reforçava a ideia que a sociedade fazia dos negros, ou seja, a de merecerem a
desconfiança por tudo o que de errado era feito... Ele disse que não era por
acaso que os brancos os chamavam de “vagabundos e ladrões”.
Barnabé protestou...
Comentou que a interpretação de Dito era preconceituosa e racista... O seu
procedimento não era errado... Não se tratava de roubo, mas de “expropriação”,
palavra que aprendeu das conversas que ouvia entre os estudantes de Direito
quando era engraxate nas proximidades do Ponto Chic.
Para Barnabé, se roubassem/expropriassem,
ou não, sempre diriam que eles (a gente negra) fizeram algo errado... Portanto,
de acordo com o seu entendimento, o preconceito estava enraizado na sociedade
dominante.
(...)
Continuaram a
discutir a respeito do racismo, e também sobre a disposição que Barnabé tinha
de tirar vantagem em meio às tragédias provocadas pela guerra...
Os
dois prosseguiram sua expedição e de repente ouviram disparos e canhoneiros...
As explosões eram assustadoras e por isso decidiram interromper a marcha.
Encontraram uma gruta onde puderam passar a noite... Ao amanhecer retomaram a
caminhada tomando como referência o leito do rio.
Os rapazes encontraram um
barqueiro que informou que o confronto da noite anterior tinha sido ali perto,
bastaria seguir no rumo da mata e chegar à clareira... Disse também que os
últimos soldados que haviam passado por ali tinham fardas iguais às deles, mas
eram todos brancos.
Barnabé
e Dito ficaram um pouco decepcionados ao saberem que não se tratava de batalhão
da Legião, porém o fato de ouvirem que os soldados avistados pelo barqueiro
eram aliados os animou a prosseguir no rumo do cenário de batalha... Concluíram
que os paulistas passaram rapidamente pelo local e seguiram em diante...
Barnabé não deixou de manifestar sua esperança de encontrar algum oficial
morto...
(...)
Logo
chegaram ao local... Havia mortos espalhados por todos os lados... Barnabé
apressou o passo para conferir os despojos...
Dito
ficou para trás... Ele não se conformava com a falta de juízo do companheiro...
De repente ouviu uma escandalosa risada de Barnabé. Então pensou que algo muito
estranho devia estar acontecendo porque as montanhas ressoavam a gargalhada do
maníaco por botas e outros acessórios de soldados mortos.
Ao
notar que Dito se aproximava, Barnabé perguntou-lhe se era certo que os pretos
fossem os ladrões...
Ao
notar que todos os soldados mortos estavam descalços, Dito entendeu o motivo do
comportamento alucinado de Barnabé...
Os
dois fizeram o sinal da cruz... De certa forma pediam perdão aos mortos pela
profanação imposta pelos soldados (brancos) que os antecederam...
Continuaram o seu
caminho... Riam sem entender o motivo... Além daquela “incoerência”, o que mais
a guerra revelaria?
Afinal, quem “ganha” em meio a tantas perdas?
Leia: A
Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto