A família de Luvercy vivia bem apertada numa pequena casa de bairro afastado do centro de Santos...
Além do rapaz, seu Orlando e dona Arminda tinham quatro filhas.
O alistamento dos dois homens da família era algo que a mulher tinha de suportar em silêncio... Ela recorria às suas orações e pedia ao santo de sua devoção, São Judas Tadeu, que os protegesse e os trouxesse sãos de volta das batalhas... Também as meninas se ajoelhavam em prece...
(...)
Seu Orlando era estivador, mas entendia que a
revolução tinha causa justa e que a sua participação ao lado do filho poderia trazer
melhorias para a família... Não foi fácil convencer o rapaz...
Luvercy continuou a sustentar que era um esportista e que em nada poderia
contribuir para que São Paulo vencesse as tropas federais... Orlando
argumentava que o rapaz devia contribuir ao menos para retribuir o esforço que
haviam feito para que ele, o único da família, estudasse e terminasse os cursos
primário e ginasial...
No entendimento de seu Orlando, o Exército paulista
recompensaria o sacrifício a que ambos estavam se submetendo... Luvercy “seria
alguém na vida”, e suas irmãs poderiam se casar.
Aquela história de o rapaz querer se tornar jogador de futebol devia ser
esquecida... Aquilo era coisa para “vagabundos”... Será que o moço não sabia
que o principal futebolista que atuava no país estava engajado no movimento
constitucionalista?
O pai se referia a Arthur Friedenreich, ”filho de uma negra com um
alemão”... É claro que Luvercy sabia disso... Ele mesmo emendou que o atleta
tinha 40 anos e que talvez nem fosse realmente deslocado para os campos de
batalha... O “Comando Revolucionário” pretendia apenas usar a sua imagem para
incentivar novos alistamentos...
Seu Orlando queria que o filho se empolgasse com a possibilidade de
receberem ajuda após a revolução... Com apenas 18 anos, Luvercy conseguiria um
bom emprego e a família seria respeitada.
Mais uma vez, o jovem manifestou a sua visão crítica a respeito de tudo
aquilo que o pai valorizava... Ele disse que os negros eram indesejados tanto
nas escolas quanto nas fábricas... O próprio seu Orlando devia pensar sobre o
tipo de trabalho que ele mesmo tinha desempenhado na vida... E em relação à
luta, no entendimento de Luvercy, estava claro que os brancos não queriam
misturas, e é por isso que a Legião havia sido criada...
Orlando não concordava com
aquilo... O seu entendimento era o de que, após a vitória paulista, as divisões
entre brancos e negros teriam fim...
(...)
Dona Arminda e as filhas
ouviam a conversa dos dois homens da família... Oravam ao “santo protetor dos
desesperados”...
A mãe acendeu velas
para os anjos da guarda de Orlando e Luvercy. Ela pediu para os dois pararem
com a discussão, e comentou que as jovens do bairro não queriam nem saber do filho
por causa de seu jeito turrão...
Luvercy rebateu a crítica que sua mãe lhe fez... Disse que as “pretinhas
do bairro não queriam saber dele porque ele era preto”... O sonho delas era o
de se casarem com tipos brancos que lhes podiam garantir vida melhor.
Comentando diretamente com
a mãe, o rapaz disse que o pai estava enganado ao imaginar que ainda seriam
aceitos pelos brancos... Seu Orlando o interrompeu e como que a corrigi-lo
emendou que se os negros lutassem pelos mesmos ideais não teriam como lhes
negarem o valor.
Depois dessa afirmação, Luvercy soltou o verbo...
Disse que desde o começo da História do país, o único valor que os negros
tiveram foi o de trabalhar como escravos... Os brancos lucravam com o trabalho
e o comércio de escravos!
Orlando não podia contradizer as palavras do rapaz... Luvercy o fez
lembrar-se da própria história... É que seus avós eram escravos de um rico
proprietário que os deixou de herança para os filhos... O avô de seu Orlando foi
encaminhado para o filho daquele proprietário, um padre que “não abriu mão de
seu direito de senhor”; a avó foi mandada para o sul do país, onde vivia a
filha do morto, casada com um coronel... E os doze filhos “serviram para quitar
dívidas deixadas pelo defunto”.
O avô de Luvercy, pai de
seu Orlando, havia sido “entregue ao administrador do cemitério como paga pelo
enterro do velho proprietário de escravos”...
(...)
Seu Orlando conhecia bem aquela história... O
pai lhe contara tantas vezes... Em tantas ocasiões ele mesmo a repetira para
dona Arminda e os filhos... Ela e as meninas não puderam segurar as lágrimas no
instante em que Luvercy fazia a sua narrativa.
Leia: A
Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto