Marieta tinha mesmo a aparência entristecida... As marcas na pele, notadamente no rosto, somavam-se às suas características físicas e davam-lhe um aspecto menos agradável. É que ela contraiu varíola durante uma epidemia no começo do século passado. As marcas eram sinal evidente de que um dia havia superado a grave doença infecciosa (popularmente conhecida como Bexiga).
Mas isso não foi motivo para que o casamento deixasse de ocorrer... Assim, menos de três meses após aquele jantar (marcado pela grande quantidade de vinho ingerida por Miro, fartura dos pratos italianos, timidez de Marieta, e ainda por sua declamação do poema de Olavo Bilac) no casarão da chácara Santa Luccia, Miro respondeu o “sim” tão esperado por Vamparazzo durante a celebração na matriz de São Valentim.
Como não podia deixar de ser, a festa foi das mais opulentas e concorridas... Dois bois foram sacrificados para garantir o churrasco. Bebida variada não faltou para atender as centenas de pessoas que chegaram de longe para parabenizar os noivos e também para conhecer a clínica prometida (inaugurada no mesmo dia do casamento).
(...)
Uma verdadeira multidão começou a afluir à clínica...
Miro se animou muito e atendia a todos com muita dedicação.
Ele embasava a sua prática num antigo, encardido e volumoso compêndio que
havia adquirido em um sebo da capital... Na clínica ele aplicava injeções,
providenciava xaropes para combater tosses e fazia curativos...
Conforme o tempo passou, ele foi se enchendo de
confiança... Sentia mesmo que fazia jus à consideração que recebia dos
pacientes. Era chamado de doutor e acreditava que com a experiência que vinha
acumulando poderia se tornar médico de fato.
(...)
Mas se a condição “profissional” de Miro parecia deslanchar, sua vida
marital era tão atravancada que corria riscos de desmoronar...
Marieta até se esforçava, usava o seu penhoar e pantufas “amarelo-bebê”
e pedia a Romilda que preparasse mesas fartas para o marido... Porém a relação
era sempre de muita formalidade... Foi a muito custo que Miro conseguiu
convencê-la a deixar de chamá-lo de “doutor Teodomiro”...
A verdade é que ela sequer podia garantir que o amasse de fato... É
claro que era fiel às promessas feitas durante a celebração do casamento... Mas
nem mesmo podia afirmar que o conhecia!
Por outro lado, o doutor tinha a total confiança de Vamparazzo... O
velho italiano não se cansava de falar a respeito das glórias do genro...
(...)
Miro não se importava com a
esposa, e não conseguia disfarçar a rejeição... Ela tinha a impressão de que
ele nem notava a sua presença... Certa vez ele observou que talvez fosse melhor
dormir no quarto de hóspedes, e justificou que era provável que o seu ronco a
incomodasse... Disse também que faria um tratamento...
Por mais que ela insistisse
em dizer que não se incomodava, Miro não lhe dava atenção... Ficava cada vez
mais claro que a sua intenção era se afastar da relação sem maiores traumas... Continuariam
a viver sob o mesmo teto para manter uma aparência de “casal realizado”.
(...)
Pobre Marieta...
Vivia a se perguntar se não teria sido melhor envelhecer solteirona... Aquele
relacionamento a colocava numa condição de “viúva de marido vivo”.
Seus esforços eram todos em vão... Miro nunca manifestava a menor
consideração. É por isso que aos poucos alguns sonhos que alimentou na
adolescência retornaram... Ela passou a se lembrar de antigas paixões, do
primeiro beijo, da idealização de algum “príncipe encantado” que a levaria para
um final feliz...
Também da época de sua
adolescência vinha-lhe a lembrança de quando contraiu varíola... Ela começou a
pensar que a moléstia tenha sido decisiva para que se tornasse ainda menos
atraente.
Os “buraquinhos” na pele a
incomodavam... Será que eles eram a causa da rejeição que sofria do marido?
Será que Miro pensava que o contato fosse infeccioso?
Independentemente de suas frustrações, Marieta
estava convicta de que não poderia deixar de ser fiel ao marido... Só a morte
poderia separá-los.
Leia: A
Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto