quarta-feira, 1 de abril de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – de repente Miro se tornou celebridade entre os habitantes de Marilândia; na pequena cidade, o comendador Vamparazzo tem planos para o jovem doutor

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/03/a-legiao-negra-luta-dos-afro_69.html antes de ler esta postagem:

No caminho até a Hospedaria Paraíso, o motorista só tinha assuntos para trocar com o mascate... Para ele, aquele “acompanhante de cor” só podia ser um ajudante do “Turco”. Ele sabia que havia negros na pequena Marilândia, mas nunca nenhum deles alugou o seu Chevrolet ou se hospedara na Paraíso.
(...)
Dona Margarida era uma simpatia só. Ela já conhecia o Salim de muitos anos. Sempre que passava pela região ele se hospedava na Paraíso, e nunca se esquecia de deixar-lhe um pequeno agrado como um perfume ou penduricalhos... A dona da hospedaria ficou muito satisfeita ao saber que o acompanhante do Salim era um doutor.
Conforme fazia o registro de entrada e providenciava o quarto de Miro, a mulher foi apresentando suas queixas a respeito de uma “dor ardida”... Miro tinha experiência suficiente como enfermeiro e já estava acostumado a lidar com aquele tipo de mal-estar... Sem pestanejar pegou sua caixa de primeiros socorros e retirou um frasco que continha óleo com cânfora... Aqueceu por um instante o unguento e, com ele, providenciou uma massagem em dona Margarida... Na sequência deu-lhe um analgésico e serviu-lhe um chá.
Tão logo a mulher se viu aliviada das dores, começou a falar sobre a chegada de um “doutor dos bons” à cidade.
Rapidamente os comentários se espalharam. Sem dúvida, não foi por acaso que ao retirar-se da hospedaria para caminhar à tarde, todos o cumprimentaram com um sorriso de boas-vindas.
(...)
Salim estava na praça tomando sua cervejinha e o convidou para uma prosa antes de se recolherem... Miro não era chegado a bebidas alcoólicas, então pediu um chocolate para fazer companhia ao mascate.
Não demorou e um tipo gordo, sorridente e bem vestido apareceu. Ele cumprimentou os dois forasteiros e se achegou à mesa.
Dirigindo-se ao Miro, o tipo perguntou-lhe se era o doutor que estava se mudando para a cidade... Miro respondeu que era apenas um enfermeiro que estava de passagem pelo lugar.
O homem se apresentou como Domenico Vamparazzo, comendador, ex-prefeito e amigo influente das autoridades locais... Miro explicou que era da capital e que pretendia iniciar uma “vida nova e mais saudável”, mas ainda não sabia onde isso se viabilizaria.
Vamparazzo gostou de saber que as origens de Miro só podiam ser especiais, senão não se chamaria Teodomiro Benedicto Patrocínio da Silva... Então se sentiu à vontade para dizer que chegou da Itália quando ainda era um jovem, que adquiriu terras e que foi prefeito de Marilândia por três mandatos... O prefeito que ora governava havia sido seu vice.
Vamparazzo não podia se conter com tantos elogios que tinha reservado ao ilustre recém-chegado... Obviamente Miro não conseguia entender o motivo de sua súbita fama... Então o italiano lhe explicou que todos na cidade só falavam sobre o doutor. Acrescentou que ele não devia estranhar porque ali o perímetro urbano era muito pequeno e todos se conheciam. Em toda Marilândia só se falava do “maravilhoso tratamento” que ele havia dispensado à dona Margarida...
(...)
Por mais que Miro tentasse dizer que não tinha feito nada demais, e que não entendia de Medicina, Vamparazzo insistia que a sua chegada à cidade representava um maravilhoso avanço para todos... Emendou que o doutor podia se sentir à vontade para passear mais pelas ruas, conhecer as pessoas e tomar gosto pelo lugar...
Esse Vamparazzo tinha planos... Ele quis saber a respeito dos tipos de medicamentos que Miro trazia... Quando ouviu do doutor que em sua caixa de medicamentos não havia penicilina ou qualquer outro antibiótico, garantiu que entraria em contato com o sobrinho maquinista, e que em poucos dias um grande pacote chegaria de Belo Horizonte com tudo o que Miro precisasse, “penicilina, seringas, agulhas de injeção, algodão, gaze e uns medicamentos para limpar feridas”.
O tipo acertou que depois mandaria o chofer conduzi-lo até o Barreiro, que era o bairro onde fica a zona do meretrício... Eles se reencontrariam lá e poderiam conversar mais a respeito.
(...)
Vamparazzo se despediu... Miro ficou matutando enquanto terminava o seu chocolate... Salim já havia retornado à hospedaria...
Estava claro que o italiano esperava algo do doutor.
(...)
No dia seguinte Miro mal saiu de seu quarto... Dedicou-se à leitura de Traité sur la tolérance (Tratado sobre a tolerância) de Voltaire (1763)... Essa obra, já lida outras cinco vezes por ele, era a sua preferida... Não podia deixar de carregá-la na ocasião de sua fuga da polícia política.
Cada vez ele se convencia mais de que os republicanos da Revolução Francesa “não podiam abrir mão de prerrogativas próprias da Monarquia”... Pensou em Napoleão elevado à condição de imperador...
Então retornou ao sono imaginando-se um “Napoleão conquistando Marilândia Paulista”.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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