O doutor tinha à sua disposição uma série de discos de ópera que outrora pertenceram ao marido de dona Margarida, a proprietária da Hospedaria Paraíso.
Ele ouvia o Rigoletto de Verdi enquanto se preparava para o jantar com o conde Domenico Vamparazzo e Marieta de Santa Luccia, sua única filha, a prometida... Seu futuro parecia estar em jogo, e não havia como controlar a ansiedade... A moça seria meiga, simpática, religiosa e prendada como dizia o pai? Miro havia observado as belas donzelas que se encaminhavam à igreja de São Valentim. Será que já teria visto Marieta no meio de algum grupo?
O melhor que pôde arranjar para se tornar mais apresentável foi uma gravata borboleta dada de presente pelo Salim.
(...)
Conforme o combinado, o carro conduzido por Vitorino
estacionou quinze para as nove... Pouco tempo depois Miro cumprimentava o
comendador em seu casarão localizado na chácara Santa Luccia.
Também Vamparazzo estava ansioso por receber o promissor doutor. Ele
levantou-se assim que a porta se abriu e foi logo oferecendo uma taça de vinho
ao rapaz...
Os dois se dirigiram a um canto da sala onde se
acomodaram junto a uma mesinha... Como sabemos, Miro não era dado à bebida, mas
como a noite era especial não podia recusar os brindes propostos pelo futuro
sogro.
O italiano dizia com satisfação que aquela mansão certamente passaria às
mãos de Miro no futuro, e que já tinha providenciado tudo para a construção da
clínica... Demonstrando sinais de falta de costume com o álcool, o jovem doutor
esboçou espanto porque, afinal, ele ainda nem havia manifestado sua decisão.
A situação se tornava mais delicada porque Miro estava ansioso por
conhecer Marieta, estava virando um copo após o outro e notava que perdia a
capacidade de raciocínio.
É claro que o vinho devia ser dos melhores... Mas isso não fazia a menor
diferença... Soluçando e atropelando as palavras, Miro iniciou uma frase que
dava a entender que queria saber do paradeiro da filha do comendador.
(...)
Foi dona Romilda, a empregada-governanta, quem tratou de conduzir
Marieta até a sala... Suas vestes eram joviais, mas era claro que ela contava
pelo menos dez anos a mais do que Miro... Brincos de ouro a ornavam, e sua pele
era de brancura escandalosa... A moça era magra e tinha o olhar melancólico
voltado sempre para o chão.
Talvez por causa do efeito
do vinho, Miro a enxergou como se jovem e exuberante fosse... Num primeiro
momento nada disseram e foram interrompidos pelo comendador que anunciou o
jantar italiano preparado pela filha: “espaguete à bolonhesa, porpetas,
bracholas, berinjelas em condimentos, salada de rúcula com tomate seco e
bolotas de mozarela importada da Itália, gigantescas azeitonas pretas e verdes
e fatias de ovos cozidos”...
Os aromas se misturavam e confundiam os sentidos de Miro.
A solícita Romilda cuidava
de manter o prato e o copo do doutor devidamente servidos a todo instante... O
pobre rapaz nem teve condições de experimentar da sobremesa (“compotas e frutas
da época”)...
Após a refeição, tudo
o que Miro mais desejava era se sentar na cadeira da varanda... Ele libertou-se
do aperto do cinto e do paletó e assim conseguiu respirar o fresco ar da
noite... Tomou um pouco do licor de jenipapo e do forte café.
(...)
Nem dava para perceber que Marieta estava próxima... Ela permanecia cabisbaixa
e em silêncio.
Vamparazzo se afastou de
modo imperceptível, então o casal pôde trocar algumas ideias... Miro deu início
ao comentar, não sem dificuldades, os dotes culinários de Marieta.
A moça esfregava as mãos nervosamente... Mas de repente disse que
gostaria de declamar uma poesia de Olavo Bilac... Miro aprovou... “Ora (direis)
ouvir estrelas! Certo / (...) Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir
e de entender estrelas”.
Pela vidraça, Vamparazzo observava satisfeito
como a filha solteirona parecia se entender com o promissor doutor... Acendeu
um de seus charutos e deu uma palmada no traseiro de Romilda, que também estava
encantada com a possibilidade do casamento da moça que conhecia desde que esta era
um bebê.
Leia: A
Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto