domingo, 8 de março de 2015

“A Legião Negra – A luta dos afro-brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932”, de Oswaldo Faustino – o espanhol da carvoaria e sua concepção sobre a condição dos despossuídos e a respeito do poder; migrantes nordestinos e seus afazeres na cidade do começo do século passado; preconceito contra os da Bahia e suas motivações históricas

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2015/03/a-legiao-negra-luta-dos-afro_8.html antes de ler esta postagem:

Faustino teve o mérito de colocar personagens típicos, nordestinos e europeus imigrantes bem comuns na São Paulo do começo do século passado, em ambientes em que opinavam abertamente a respeito da guerra.
Conforme dialogam, as interpretações dos segmentos sociais que representam se revelam. Também são expostos os conceitos (e preconceitos) que alimentam a respeito dos outros.
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Tião deixou a revista de lado e ficou pensando sobre os comentários do noticiário dos tempos da Revolução de 1930... Os radialistas diziam mesmo que a “política do café com leite” havia chegado ao fim, e que o doutor Getúlio estava “trazendo vida nova para todos os destituídos da sorte!”.
Ninguém podia dizer que Tião fosse um “destituído de sorte”... Não era por acaso que ele também era conhecido como Tião Mão Grande entre os que frequentavam o Largo da Banana... Ele dava muita sorte no carteado e nos jogos com os dados... E ainda podia se gabar de não o derrubarem nas rodas de tiririca.
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Na cadeira do barbeiro estava o espanhol da carvoaria... Tião ouviu quando este tipo pronunciou que não havia homens livres no Brasil... Estava claro que ele havia se intrometido na conversa sobre o confronto dos paulistas contra Vargas... Faustino coloca essas significativas palavras na boca do estrangeiro: No perda su tempo. Ellos sólo quieren explorar los marginados. No se equivoquen. Ni los liberales ni los republicanos tienen el menor interés em ti. No quieren que sea alguien em la vida.
O mais velho dos barbeiros, alagoano conhecido por menosprezar estrangeiros, disse que não deviam dar ouvidos ao espanhol... Emendou que ele era um tipo anarquista e que outros como ele só vinham para o Brasil a fim de infernizar os brasileiros com suas ideias...
O barbeiro mais jovem, migrante mineiro, concordou com o chefe... Exclamou que se o gringo não estivesse satisfeito em nosso país, era só retornar para a Espanha, onde podia terminar no paredón.
O cliente estrangeiro ficou furioso e parece ter se exaltado ainda mais ao ouvir a última palavra do barbeiro de Minas Gerais... Tião não conseguiu articular o que o espanhol vociferava... Porém, além do nome do presidente Vargas, alguns termos puderam ser “decifrados” por ele.
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Neste ponto Faustino segue relatando o que um imigrante espanhol poderia proferir numa reunião como aquela da barbearia: confianza ninguna; suspendió los derechos civiles; oligarquías regionales; corrupción... E mais: Si hay gobierno, soy contra.
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Já nas proximidades da Chácara do Carvalho, Tião notou que muitas mulheres (“negras, mulatas, caboclas, brancas e até indígenas”) se aglomeravam junto ao portão para ver os seus entes queridos (maridos, filhos, namorados...) em treinamento... Também a criançada se encantava, mas era com as fardas e as armas dos combatentes.
Uma negra já idosa chamou a atenção de todos ao gritar com um jovem que passava pelo calçamento... O rapaz, ele também negro, se assustou quando a mulher disparou que, se ele não servia para se tornar um soldado, não teria serventia para mais nada...
A velha arrancou a própria saia e atirou-a contra o rosto do moço... Só de saiote, ela sugeria que o garotão passasse a usar a roupa feminina, e que lhe entregasse suas calças porque ela mesma lutaria em favor de São Paulo.
Não sem constrangimento, o rapaz disse que aquela revolução não era dele, mas sim da “brava gente bandeirante”. Ainda mais nervosa, a mulher perguntou se ele não era paulista.
O moço foi se retirando ao mesmo tempo em que respondia que era da Bahia, e que só estava em São Paulo para conseguir algum dinheiro... Não queria nem saber de lutar por paulistas.
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Não pense que a velha ficou sem jeito...
Ela recolheu a saia do chão e disse para que todos à sua volta ouvissem que aquele tipo só podia mesmo ser da Bahia... Garantiu que seu patrão vivia falando mal dos baianos
Ela não sabia que desde o século XIX os ricos fazendeiros da região sudeste se recusavam a adquirir escravos da Bahia porque sabiam de sua fama de revoltosos... Principalmente o episódio de 1835 (Revolta dos Malês, quando negros islâmicos se revoltaram em favor da libertação de todos os escravos, contra a imposição do catolicismo, e pelo estabelecimento de uma república islâmica) apavorou os poderosos.
O preconceito contra os baianos tinha essa fundamentação e era disseminado pelos patrões brancos entre os seus criados negros... Muitos deles, e esse era o caso daquela senhora irritada com o rapaz, incorporavam aquela concepção.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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