Faustino teve o mérito de colocar personagens típicos, nordestinos e europeus imigrantes bem comuns na São Paulo do começo do século passado, em ambientes em que opinavam abertamente a respeito da guerra.
Conforme dialogam, as interpretações dos segmentos sociais que representam se revelam. Também são expostos os conceitos (e preconceitos) que alimentam a respeito dos outros.
(...)
Tião deixou a revista de
lado e ficou pensando sobre os comentários do noticiário dos tempos da Revolução
de 1930... Os radialistas diziam mesmo que a “política do café com leite” havia
chegado ao fim, e que o doutor Getúlio estava “trazendo vida nova para todos os
destituídos da sorte!”.
Ninguém podia dizer que Tião fosse um “destituído de
sorte”... Não era por acaso que ele também era conhecido como Tião Mão Grande
entre os que frequentavam o Largo da Banana... Ele dava muita sorte no carteado
e nos jogos com os dados... E ainda podia se gabar de não o derrubarem nas
rodas de tiririca.
(...)
Na cadeira do barbeiro estava o espanhol da carvoaria... Tião ouviu
quando este tipo pronunciou que não havia homens livres no Brasil... Estava
claro que ele havia se intrometido na conversa sobre o confronto dos paulistas
contra Vargas... Faustino coloca essas significativas palavras na boca do
estrangeiro: No perda su tempo. Ellos
sólo quieren explorar los marginados. No se equivoquen. Ni los liberales ni los
republicanos tienen el menor interés em ti. No quieren que sea alguien em la
vida.
O mais velho dos barbeiros, alagoano conhecido por
menosprezar estrangeiros, disse que não deviam dar ouvidos ao espanhol...
Emendou que ele era um tipo anarquista e que outros como ele só vinham para o
Brasil a fim de infernizar os brasileiros com suas ideias...
O barbeiro mais jovem, migrante mineiro, concordou com o chefe...
Exclamou que se o gringo não estivesse satisfeito em nosso país, era só
retornar para a Espanha, onde podia terminar no paredón.
O cliente estrangeiro ficou furioso e parece ter se exaltado ainda mais
ao ouvir a última palavra do barbeiro de Minas Gerais... Tião não conseguiu
articular o que o espanhol vociferava... Porém, além do nome do presidente
Vargas, alguns termos puderam ser “decifrados” por ele.
(...)
Neste ponto Faustino segue relatando o que um imigrante espanhol poderia
proferir numa reunião como aquela da barbearia: confianza ninguna; suspendió los derechos civiles; oligarquías regionales;
corrupción... E mais: Si hay
gobierno, soy contra.
(...)
Já nas proximidades da Chácara do Carvalho, Tião notou que muitas
mulheres (“negras, mulatas, caboclas, brancas e até indígenas”) se aglomeravam junto
ao portão para ver os seus entes queridos (maridos, filhos, namorados...) em
treinamento... Também a criançada se encantava, mas era com as fardas e as
armas dos combatentes.
Uma negra já idosa chamou a
atenção de todos ao gritar com um jovem que passava pelo calçamento... O rapaz,
ele também negro, se assustou quando a mulher disparou que, se ele não servia
para se tornar um soldado, não teria serventia para mais nada...
A velha arrancou a própria
saia e atirou-a contra o rosto do moço... Só de saiote, ela sugeria que o
garotão passasse a usar a roupa feminina, e que lhe entregasse suas calças
porque ela mesma lutaria em favor de São Paulo.
Não sem
constrangimento, o rapaz disse que aquela revolução não era dele, mas sim da “brava
gente bandeirante”. Ainda mais nervosa, a mulher perguntou se ele não era
paulista.
O moço foi se retirando ao mesmo tempo em que respondia que era da
Bahia, e que só estava em São Paulo para conseguir algum dinheiro... Não queria
nem saber de lutar por paulistas.
(...)
Não pense que a velha ficou
sem jeito...
Ela recolheu a saia do chão e disse para que todos à
sua volta ouvissem que aquele tipo só podia mesmo ser da Bahia... Garantiu que
seu patrão vivia falando mal dos baianos
Ela não sabia que desde o século XIX os ricos fazendeiros da região
sudeste se recusavam a adquirir escravos da Bahia porque sabiam de sua fama de
revoltosos... Principalmente o episódio de 1835 (Revolta dos Malês, quando
negros islâmicos se revoltaram em favor da libertação de todos os escravos,
contra a imposição do catolicismo, e pelo estabelecimento de uma república
islâmica) apavorou os poderosos.
O preconceito contra os baianos tinha essa
fundamentação e era disseminado pelos patrões brancos entre os seus criados
negros... Muitos deles, e esse era o caso daquela senhora irritada com o rapaz,
incorporavam aquela concepção.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto