Berenice assumiu o pequeno Miro garantindo para si mesma que seu futuro seria digno... Para ela, Miro ainda seria um homem muito importante... Não pouparia esforços para cumprir o seu compromisso moral.
Além dessa consideração, ela levava em conta que o filho de Benê era sobrinho-neto de José do Patrocínio, valoroso intelectual, jornalista e abolicionista reconhecido por todos... Assim, o garoto deveria honrar o nome que carregava.
(...)
De fato, conforme crescia,
Miro se destacava nos estudos...
Ele só tinha um amigo, Neo
(Nelópidas Dalla Rosa Filho), o sobrinho de Berenice... O pai de Neo (irmão da
Berenice) era major do Exército, casado com dona Verônica Cantalizza Dalla Rosa.
Sobre o Nelópidas pai, pode-se dizer que ele um dia admitiu
que iria tomar providências para punir os homens que violentaram a pobre
Benê... Porém é certo que nada fez a respeito. Além de Neo, tinha mais seis
filhas, e procurava impor rígida disciplina na casa... Naturalmente esperava
que o seu varão também seguisse a carreira militar, e de modo algum aprovava a
sua amizade com o “garoto de cor”.
Sua implicância não intimidava a admiração que Neo dispensava ao amigo
Miro... Tanto é que sempre que podia se dirigia à casa da tia Berenice. Todos
viam que Miro era mesmo um garoto inteligente e diferenciado...
Neo arriscava-se ao falar sobre a inteligência e
esperteza do amigo com o pai... Numa ocasião ele até sugeriu que Miro poderia
se dar muito bem como oficial do Exército... Mas é claro que Nelópidas pai
alertava o filho para não “dar corda” ao outro, que até “podia pensar que era
igual a ele”.
A verdade é que era Miro quem auxiliava o filho do major em suas
atividades escolares... Mas não era só isso o que o atraía... Neo gostava muito
de se divertir com o amigo também pelas ruas do bairro de Higienópolis.
(...)
Sobre o bairro (criado para as ricas famílias paulistas ligadas à produção/exportação
de café “pelo engenheiro suíço Frederico Glete e pelo alemão Victor Nothmann,
sócio do urbanista francês Martinho Buchard”), Faustino destaca que ele surgiu
das chácaras de três senhoras que pertenciam a famílias aristocráticas (as
donas “Maria Antonia da Silva Ramos, filha do Barão de Antonina; Maria Angélica
de Souza Queiroz Aguiar de Barros, filha do Barão de Souza Queiroz; Veridiana
Valéria da Silva Prado, filha do Barão de Iguape”).
Os nomes pomposos das antigas proprietárias pouco diziam a Miro, que
gostava mesmo era de apreciar as mansões das alamedas enquanto sonhava com a
remota possibilidade de tornar-se arquiteto... Neo imaginava que aqueles nomes
femininos só podiam pertencer a beldades como as que ele contemplava a certa
distância dos colégios de seu tempo (o Des Oiseaux e o Nossa Senhora do Sion).
(...)
Berenice levou à risca o seu intento de capacitar Miro o mais que podia...
Como considerava inferiores os costumes da gente negra, o manteve afastado e
forneceu tudo o que os brancos ricos podiam ter de melhor na educação formal...
Assim, Miro teve aulas de música e muitos livros à sua disposição, pôde praticar
esportes e se alimentou como os filhos dos barões... Sua formação podia ser
equiparada ou até superior à do Nelópidas filho.
Não é por acaso que Miro
passou a se identificar com a cultura europeia ao mesmo tempo em que
demonstrava aversão ao “modo de ser” dos negros, com os quais ele tinha em
comum a pele enegrecida.
Ele assumia a condição de “moreno”
e dessa forma podia divisar a distância que o separava dos desfavorecidos...
Berenice cuidava de reforçar que os traços de Miro só podiam ser herança do
pai... E insistia que da parte de Patrocínio ele devia carregar muito sangue
português... Ensinava que a “parte mourisca de Portugal” não é totalmente
branca... E que a bisavó materna do rapaz tinha sangue indígena e reconhecida valentia,
tanto é que mesmo tendo sido caçada a laço jamais se deixou escravizar.
(...)
Não há como não notar
que Berenice ensinava que era muito mais interessante ter ascendência indígena
do que negra.
Mas então, por quais motivos Miro de aproximou
de seus comandados negros naquela longínqua noite de 1932 no Vale do Paraíba?
Por que, apesar da aversão que aprendeu a cultivar, decidiu abrir-se ao Tião, ao
Bento e ao Luvercy?
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto