A lembrança das considerações feitas por Miro na longínqua noite de setembro de 1932 (nas proximidades de Queluz) fez o velho Tião se arrepiar no banco da praça...
A madrinha e os professores brancos de Miro contribuíram para que o seu entendimento preconceituoso a respeito da gente negra se solidificasse em sua mente... Ele passou a crer que a ascendência indígena era “mais nobre” do que a negra porque os nativos da terra “não se deixaram escravizar”.
(...)
Aos companheiros, Miro
admitiu que “negava a sua negritude por desconhecer a própria árvore
genealógica”...
Ao mesmo tempo em que ouvia
o que Miro dizia, Tião pensava sobre a grande variedade de árvores (umas
fraquinhas, outras robustas) e imaginava que certamente ele mesmo pertencia a
uma daquelas bem fortes, talvez um gigantesco baobá do qual ele fosse um dos
mais portentosos galhos...
(...)
O velho Tião se recorda do momento em que se alistou
na Legião Negra...
Estava sem documento, mas é claro que o pessoal que fazia o registro dos
recrutas não estava em condições de dispensar voluntários... Então o folgazão
Tião, que contava 20 anos e era um gozador de primeira, não titubeou ao dizer
que se chamava Sebastião Honório de Paula Prado (simplesmente fez uma
brincadeira com o nome da família proprietária da chácara onde a Legião se
instalou)... O resultado foi a confecção de um documento que servia como uma “identidade
provisória”...
O mais incrível na história imaginada por Faustino é
que, muitos anos depois, Tião viria a se tornar oficialmente um Prado... Já
contava 50 anos na década de 1960 quando ficou sabendo que um incêndio destruiu
os livros de registros de um cartório uns 20 anos antes... Tião resolveu se
dirigir ao cartório para solicitar uma segunda via de sua certidão de
nascimento garantindo que havia sido registrado ali... Ele apresentou o antigo
documento produzido na ocasião de seu alistamento na Legião Negra... Levou
também duas testemunhas, que no caso eram companheiros de malandragem no Lago
do Peixe e de carteado na Rua Direita (também eram sambistas dos bons da Nenê
de Vila Matilde)...
Há que se ressaltar que além do papel e das testemunhas, Tião conseguiu
convencer o oficial do cartório com algumas cédulas que “somavam alguns
milhares de cruzeiros”...
(...)
Uma funcionária questionou o chefe sobre possíveis complicações que
aquela fraude poderia gerar... Ele respondeu que o tempo passaria e o portador
do documento morreria sem provocar incômodos aos herdeiros de Antonio da Silva
Prado, o cafeicultor Barão de Iguape (pai de dona Veridiana)...
Para desencargo da consciência, o oficial do cartório deu uma das
notas à moça.
Enquanto isso, Tião
se divertia num bar com os amigos ao dizer que um dia entraria na Justiça para
requerer sua parte da herança... Já pensou? Áreas de Campos Elíseos e Barra
Funda... Um terço de Higienópolis...
(...)
Mas não era bem assim... Na
época em que Tião conseguiu o “documento que o fazia um Prado”, a antiga
oligarquia já não representava a elite paulistana... Aqueles que ostentavam os
nomes das ricas famílias cafeicultoras de outrora sequer podiam se considerar
parte da aristocracia... Os barões estavam falidos há muito tempo.
(...)
Um enredo fantástico foi
desenvolvido por Tião... E desde a época em que esteve no alojamento da Chácara
do Carvalho contava a quem tivesse disposição para ouvi-lo que sua avó paterna,
Rosalina, havia sido escrava na fazenda dos Prado... Ela teria sofrido abuso do
patriarca da família e, assim, Miguel (o pai de Tião) seria “filho ilegítimo”
do barão...
Ele garantia que o sobrenome
Prado constava do registro de seu pai, mas o documento havia desaparecido
misteriosamente... Apesar disso, o testamento do barão reservava parcela de sua
fortuna para o filho negro que teve com Rosalina... Ele explicava que a “família
legítima” conspirou para que nenhuma partilha ocorresse.
Alguém acreditava nessa conversa?
É claro que não! Mas Tião
tinha certeza que, enquanto não se esquecesse da fantasia que criara,
continuaria a contá-la.
Alterar “oficialmente” as próprias origens a
partir de um documento seria absolutamente incomum?
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto