Depois que Tião construiu o tanque onde Rosa passou a lavar os panos, muitas outras lavadeiras também deixaram de ir ao Saracura, pois podiam fazer o seu trabalho dentro do próprio cortiço... Mais alguns tanques foram feitos, mas mesmo assim as mulheres “faziam fila” para esperar sua vez.
(...)
Se a situação era de aperto para as lavadeiras, o que dizer das
condições sanitárias no cortiço? Eram precárias demais!
Só havia um banheiro e por
isso havia filas para aguardar a vez de utilizar a “casinha”. Não eram poucas
as ocasiões em que as pessoas recorriam ao mato para satisfazer suas
necessidades fisiológicas.
(...)
A lembrança do cortiço traz a saudade do cheiro da
cozinha que sequer fogão a gás tinha... A comida era feita na espiriteira ou no
“fogão a lenha” montado fora do cômodo...
Neste ponto do texto, Faustino revela um pouco dos hábitos alimentares
da gente dos cortiços do começo do século passado... O próprio Tião ia até o
matadouro do bairro tocado pelo “Seu Bexiga” (neto do fundador do matadouro)...
Lá, ele conseguia uma porção de tripas de porco. Em algumas oportunidades havia
tanta tripa que o seu Bexiga nem cobrava nada.
Rosa preparava tudo com muito cuidado e limpava os
miúdos com vinagre... Sempre apareciam vizinhos para experimentar das tripas servidas
fritas.
(...)
Dia dos mais tristes foi quando o português que era dono dos casarões
apareceu para comunicar que os inquilinos deviam arranjar outros locais para
morar... Ele estava vendendo as propriedades para a modernização da cidade, e
garantia aos pobres coitados que certamente arranjariam outros lugares para
viver... Podiam mudar para o interior! O tipo dizia mesmo que “a negada”
precisava largar de ser preguiçosa e consumidora de cachaça... Então que fosse
cultivar as terras do interior do estado!
(...)
Aquele era o tipo de situação que levava Tião a refletir sobre a riqueza
da grande cidade de São Paulo... Ela pertencia à “brava gente bandeirante”... E
não a tipos como ele e os moradores dos barracos do Bexiga, Largo do Piques ou
Liberdade.
As histórias sobre a existência de um quilombo às
margens do Saracura eram antigas... Quando Tião era garoto ouvia falar que
escravos fugitivos e negros libertos viveram ali em cabanas isoladas... Será
que aquilo era o motivo de os brancos, e especialmente a polícia, olharem os
negros com tanta desconfiança?
Mesmo em sua velhice, Tião não conseguira entender a perseguição que a
sua gente vivia sofrendo...
(...)
Faustino cita os artigos 295 e 296 do Código Penal dos tempos do império
(1830), que estabeleciam a “vadiagem” e a “mendicância” como crimes... Os
negros libertos, e mais tarde os nascidos após a Lei do Ventre Livre (1873),
sempre eram averiguados... Se não conseguissem comprovar ocupação que
possibilitasse a sobrevivência podiam ser presos.
Outra citação interessante
é a que faz referência ao Código de Contravenções Penais (1941), que
possibilitou a criação das Delegacias de Vadiagem... Os artigos 59 e 60 do
referido código tratava especificamente dos casos dos “desocupados
inconvenientes”...
O que esperar das
autoridades que não incentivavam a criação de postos de trabalho para a gente
carente? Para elas a questão do trabalho estava solucionada desde que os
imigrantes europeus começaram a chegar e substituir a mão-de-obra dos
escravos...
(...)
As reflexões de Tião nos levam a pensar sobre as
limitações impostas aos negros quando o tema de discussão é o trabalho
remunerado... A eles restaram bem poucas alternativas no decorrer do tempo... As
mulheres se viravam como lavadeiras ou empregadas domésticas... Muitas delas se
tornaram responsáveis pelo sustento da família... Aos homens restavam poucas opções,
e quase sempre se tornavam pedreiros... Se não era assim tinham de recorrer aos
“bicos” de ocasião.
Leia: A Legião Negra. Selo Negro Edições.
Um abraço,
Prof.Gilberto