Topsius estava pronto para partir. Devidamente paramentado, resolveu chegar à porta do quarto de Teodorico para apressá-lo.
Trazia uma Bíblia num dos compartimentos de seu capote de alpaca, calçava galochas e tinha um belo cachimbo preso à boca. Queixou-se da demora do português e na sequência disse que compreendia o motivo... Atrasava-se por causa da “bela dama”...
Com os óculos na ponta do nariz, brincou que não era fácil “deixar os braços de Cleópatra”... Lembrou que Marco Antônio perdeu “Roma e o mundo” por não abandonar os braços da bela rainha egípcia.
O alemão lembrou que até mesmo ele (completamente envolvido em suas pesquisas) partia para Jerusalém com “gratas memórias dos dias vividos em Alexandria”... Não se esqueceria dos agradáveis passeios pelo Mamudiê... Gostaria mesmo de levar o par de luvas de Mary, pois, dessa maneira, mesmo que não retornasse à Alexandria, teria consigo um par de peças de “Miss Mary, luvas e flores de cera”.
Em retribuição, Topsius prometeu enviar-lhe sua “História dos Lágidas” assim que a concluísse. Ressaltou que havia trechos bem picantes, como um que trata da paixão de Cleópatra pelo rei da Judéia, Herodes.
(...)
Alpedrinha
continuou com a arrumação... Aos gritos interrompeu a falação de Topsius... Descobriu
mais roupa suja no meio dos cobertores... Anunciou um camisão com laços de seda
e rendas. Conforme o rapaz agitava, “um aroma saudoso de violeta e de amor” se
espalhava pelo cômodo... Pelo menos era assim que Teodorico pensava.
É claro! Aquela era a
camisa com a qual Mary dormia abraçada a ele. No mesmo instante avisou-a... A
moça empalideceu, levantou-se um tanto trêmula e pegou o camisão... Enrolou a
peça e atirou-a aos braços do amado... Era como se tivesse entregando-lhe o
próprio coração no embrulho.
A moça sentenciou que
ele devia levar a camisa em sua romagem, pois o amarrotado do pano era
resultado da louca paixão que vivenciaram. Gostaria que a mantivesse no mesmo
leito em que dormisse... Seria como se ela mesma estivesse ao seu lado!
(...)
Ela ainda teve tempo
de correr à mesa onde se encontravam papéis cheios de rabiscos do Teodorico à
sua tia Patrocínio (a respeito dos jejuns, orações e leituras bíblicas
praticados em Alexandria). A moça escreveu uma dedicatória para tornar ainda
mais significativo o souvenir.
(...)
Teodorico abraçou a
perfumada camisa. Não conseguiu conter as lágrimas que lhe umedeciam a barba...
Ao mesmo tempo investigou o ambiente, percorrendo-o com o olhar, para descobrir
como poderia “guardar aquela preciosa relíquia de amor”.
Topsius tornou-se impaciente... A consulta ao seu relógio de prata
confirmou que estavam atrasados. O grego do hotel começou a chamar a atenção de
Teodorico, pois estava mesmo ficando tarde. O rapaz ainda conseguiu ler o papel
onde a sua Maricocas registrara sua dedicatória de amor: "Ao meu
Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!"
Um encanto! Ele expressou um “oh riquinha!”... Depois quis saber onde
poderia acomodar a camisa, pois não poderia levá-la descoberta nos braços.
Alpedrinha tratou de abrir o saco que com tanto
esmero havia afivelado... Mas logo a própria Mary encontrou um papel pardo no
qual empacotou a camisa... Sua habilidade de luveira foi providencial...
Arranjou uma fita vermelha e com ela finalizou o brinde.
Teodorico o tomou nas mãos e o acomodou debaixo do braço com toda a
sua paixão.
Na sequência foram só abraços, beijos e a troca de palavras doces... Ele
a chamou de “anjo querido”... Ela o chamou de “amor” e implorou que lhe
escrevesse desde Jerusalém, e que não se esquecesse dela, a toda sua, “bichaninha
bonita”.
(...)
Enfim o português rumou para a carruagem que o conduziria com Topsius ao
porto de embarque.
Conforme
o veículo avançou, ele pensou nos bons passeios que fizeram e no quanto se
distanciava do sítio onde experimentara a grande e sincera paixão.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_18.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto