quarta-feira, 4 de outubro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – surpresa no dia de São Roque; Dona Patrocínio decidiu que o sobrinho a representaria na romagem à Terra Santa; consultando o atlas para reconhecer locais do trajeto propícios à libertinagem

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_38.html antes de ler esta postagem:

Naquela noite, Teodorico pensou tristemente que sua tia jamais permitiria que ele viajasse à França. Enquanto se preparava para deitar, considerou que sua sina talvez fosse a de permanecer enclausurado naquele quarto em Lisboa.
Nada mais poderia esperar... Tudo ali o torturava e entristecia... E o pior é que definitivamente não podia suportar a falta de Adélia.
(...)
No jantar seguinte, a tia Patrocínio pareceu-lhe ainda mais dominadora. Impossível não considerar o quanto ainda a riqueza acumulada pelo comendador Godinho permaneceria em seu poder.
Pelo visto, por muito tempo teria de rezar terços e mais terços na companhia da velha odiosa... Sua encenação o levava a se submeter a rituais que execrava (beijar o pé do Senhor dos Passos, “sujo de tanta boca fidalga”; ajoelhar-se piedosamente “diante de um Deus, magro e cheio de feridas”; participar de infindáveis novenas...). Tudo isso se tornava ainda mais amargo por saber que não podia contar com o afeto da pessoa amada.
(...)
Foi no dia de São Roque que Teodorico recebeu uma importante incumbência.
Pela manhã, dirigiu-se à tia para saber se ela desejava algo que pudesse ser por ele providenciado, já que estava de saída para a igreja do “milagroso do dia”. Encontrou-a na saleta que tinha a parede ilustrada pelas gravuras de São José... Ela estava no canto do sofá e em silêncio observava o caderno no qual guardava registros contábeis.
O padre Casimiro estava presente. Foi ele que, ao notá-lo, apressou-o para que entrasse logo. O religioso proferiu adulações (disse que ele era uma joia, que respeitava os velhos e que muito merecia de Deus e da Titi) e depois ofereceu-lhe um abraço.
Teodorico não entendeu o que estava acontecendo... Sorriu nervosamente e notou quando a tia fechou o caderno. Logo ela começou a dizer-lhe que havia conversado com o padre Casimiro e chegara à conclusão de que devia enviar alguém de seu sangue em “peregrinação à Terra Santa”. No mesmo instante o padre encheu-se de um largo sorriso e chamou-o “felizão”.
A mulher prosseguiu dizendo que a decisão estava tomada. Teodorico deveria visitar Jerusalém e os demais lugares sagrados. Ele nem precisava agradecer-lhe porque seu propósito era por gosto próprio e por pretender “honrar o túmulo de Jesus Cristo”. Lamentava o fato de não poder ir pessoalmente, mas era graças a Deus que não lhe faltavam meios para enviá-lo “com todas as comodidades”. Ele tinha de saber que partiria logo. Finalizou dizendo que ele podia ir à igreja cumprir seus deveres porque ela mesma não queria nada “para o senhor São Roque”.
(...)
Dona Patrocínio queria ainda conversar com o padre Casimiro... Vendo-se dispensado, Teodorico agradeceu timidamente e despediu-se dos dois.
O rapaz dirigiu-se apressadamente para o quarto e pôs-se a contemplar o próprio rosto, imaginando que em breve estaria em Jerusalém a respirar de seu pó. Depois vasculhou o baú com suas roupas velhas e apossou-se do atlas para pesquisar sobre as bandas de Jerusalém.
Passou os dedos por sobre as linhas divisórios imaginando onde poderiam estar as terras que foram pisadas por Nosso Senhor... Demorou-se num rio que imaginou ser o Jordão, mas logo conferiu que se tratava do Danúbio. Um pouco mais de verificação possibilitou que enxergasse o nome Jerusalém onde não havia linhas ou outras denominações... O ambiente devia ser todo areia... Remoto, ermo e triste.
Esse primeiro impacto foi decepcionante, mas logo ele considerou que para se chegar àquela lonjura teria de passar por locais amáveis, marcados por festas e presença feminina. Esse era o caso da Andaluzia...
E depois ainda havia Nápoles, que imaginou ser ambiente marcado por antros de luxúria... Mais adiante estava a Grécia, que talvez fosse assinalada por extensos bosques onde certamente se encontram templos. Ora, trata-se da terra de Vênus! Conheceria muitas mulheres e se empanturraria de boa comida...
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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