Naquela noite, Teodorico pensou tristemente que sua tia jamais permitiria que ele viajasse à França. Enquanto se preparava para deitar, considerou que sua sina talvez fosse a de permanecer enclausurado naquele quarto em Lisboa.
Nada mais poderia esperar... Tudo ali o torturava e entristecia... E o pior é que definitivamente não podia suportar a falta de Adélia.
(...)
No jantar seguinte, a tia Patrocínio pareceu-lhe ainda mais dominadora.
Impossível não considerar o quanto ainda a riqueza acumulada pelo comendador
Godinho permaneceria em seu poder.
Pelo
visto, por muito tempo teria de rezar terços e mais terços na companhia da
velha odiosa... Sua encenação o levava a se submeter a rituais que execrava
(beijar o pé do Senhor dos Passos, “sujo de tanta boca fidalga”; ajoelhar-se
piedosamente “diante de um Deus, magro e cheio de feridas”; participar de
infindáveis novenas...). Tudo isso se tornava ainda mais amargo por saber que
não podia contar com o afeto da pessoa amada.
(...)
Foi no dia de São Roque
que Teodorico recebeu uma importante incumbência.
Pela
manhã, dirigiu-se à tia para saber se ela desejava algo que pudesse ser por ele
providenciado, já que estava de saída para a igreja do “milagroso do dia”.
Encontrou-a na saleta que tinha a parede ilustrada pelas gravuras de São
José... Ela estava no canto do sofá e em silêncio observava o caderno no qual guardava
registros contábeis.
O padre Casimiro
estava presente. Foi ele que, ao notá-lo, apressou-o para que entrasse logo. O
religioso proferiu adulações (disse que ele era uma joia, que respeitava os
velhos e que muito merecia de Deus e da Titi) e depois ofereceu-lhe um abraço.
Teodorico não
entendeu o que estava acontecendo... Sorriu nervosamente e notou quando a tia
fechou o caderno. Logo ela começou a dizer-lhe que havia conversado com o padre
Casimiro e chegara à conclusão de que devia enviar alguém de seu sangue em
“peregrinação à Terra Santa”. No mesmo instante o padre encheu-se de um largo
sorriso e chamou-o “felizão”.
A mulher prosseguiu
dizendo que a decisão estava tomada. Teodorico deveria visitar Jerusalém e os
demais lugares sagrados. Ele nem precisava agradecer-lhe porque seu propósito
era por gosto próprio e por pretender “honrar o túmulo de Jesus Cristo”.
Lamentava o fato de não poder ir pessoalmente, mas era graças a Deus que não
lhe faltavam meios para enviá-lo “com todas as comodidades”. Ele tinha de saber
que partiria logo. Finalizou dizendo que ele podia ir à igreja cumprir seus
deveres porque ela mesma não queria nada “para o senhor São Roque”.
(...)
Dona Patrocínio
queria ainda conversar com o padre Casimiro... Vendo-se dispensado, Teodorico
agradeceu timidamente e despediu-se dos dois.
O rapaz dirigiu-se apressadamente para o quarto e pôs-se a contemplar o
próprio rosto, imaginando que em breve estaria em Jerusalém a respirar de seu
pó. Depois vasculhou o baú com suas roupas velhas e apossou-se do atlas para
pesquisar sobre as bandas de Jerusalém.
Passou os dedos por sobre as linhas divisórios imaginando onde poderiam
estar as terras que foram pisadas por Nosso Senhor... Demorou-se num rio que
imaginou ser o Jordão, mas logo conferiu que se tratava do Danúbio. Um pouco
mais de verificação possibilitou que enxergasse o nome Jerusalém onde não havia
linhas ou outras denominações... O ambiente devia ser todo areia... Remoto,
ermo e triste.
Esse primeiro impacto foi decepcionante, mas
logo ele considerou que para se chegar àquela lonjura teria de passar por
locais amáveis, marcados por festas e presença feminina. Esse era o caso da
Andaluzia...
E
depois ainda havia Nápoles, que imaginou ser ambiente marcado por antros de
luxúria... Mais adiante estava a Grécia, que talvez fosse assinalada por
extensos bosques onde certamente se encontram templos. Ora, trata-se da terra
de Vênus! Conheceria muitas mulheres e se empanturraria de boa comida...
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto