Num domingo, durante o jantar no casarão, os amigos de Dona Patrocínio passaram a falar a respeito de certas paragens e do firme propósito e da ambição daqueles que decidem mudar radicalmente de ares.
Falavam sobre um condiscípulo do padre Casimiro, que decidira se transferir para a Sé de Lamego... O próprio Casimiro não achava razoável aquela mudança... Tudo por uma “mitra cravejada de pedras vãs!”, ele dizia.
Teodorico observava o velho religioso e imaginava que a “plenitude da vida eclesiástica”, para ele, devia ser aquele marasmo em Lisboa e as ocasiões de comilanças na casa de Dona Patrocínio... De fato, na sequência o padre Casimiro sentenciou que o arroz servido estava um primor... O que mais ele podia desejar? Um arroz daquele e amigos que o admiravam... Aquela era a sua “justa ambição”.
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O tabelião José Justino
também se pôs a falar a respeito de sua ambição: uma pequena quinta banhada
pelo Minho, onde passaria a velhice em meio a roseiras e parreiras.
Dona
Patrocínio observou que certamente o bom homem sentiria falta das missas na
igreja velha de Nossa Senhora da Conceição... Acrescentou que quando nos
acostumamos à mesma missa, “não há outra que console”. Fez essas considerações
e admitiu que também ela sofreria se lhe fossem retiradas as missas de Santana,
celebradas pelo padre Pinheiro.
Nesse momento, padre
Pinheiro decidiu que também devia expor sua “justa ambição” e falou que
esperava apenas que o trono papal se fortalecesse e se tornasse fecundo, como
nos tempos de Leão X. Dona Patrocínio concordou e emendou que, pelo menos, os
cristãos podiam ser mais generosos e caridosos com o papa... Para ela, era
triste saber que o “vigariosinho de Cristo” vivia “numa masmorra, em farrapos,
sobre palha”.
A dona da casa fez
esse pronunciamento e na sequência bebeu de sua água morna e pôs-se a rezar a
ave-maria em honra do papa e de sua saúde. O doutor Margaride disse que não
acreditava que o papa vivesse em condições tão precárias e, segundo alguns
conhecidos viajantes, era de se supor que o pontífice pudesse ter até uma
carruagem... Sem dúvida, algo que podia lhe conferir certa comodidade.
(...)
Neste ponto da
conversa, o padre Casimiro perguntou ao Margaride que tipo de ambição ele
alimentava... Os demais comensais ficaram curiosos, então o doutor anunciou que,
antes de falar, degustaria o belo guisado de língua.
Depois de se
satisfazer, o magistrado sentenciou que muito agradeceria se se tornasse “par
do reino”. Não desejava honra nem os privilégios da farda, apenas a graça de
poder “defender o princípio sacro da autoridade”. Em nenhuma hipótese aceitava
o ateísmo ou a anarquia. Sendo assim, se sentiria honrado se pudesse dar “uma
cacheirada mortal” nos ateus e baderneiros que desrespeitam a Monarquia.
Todos concordaram que o cavalheiro fosse digno dos feitos que tinha por “essenciais
à nação”. Ele gostou do que ouviu e na sequência quis saber dos desejos de
Teodorico... Afinal, o que o jovem ambicionava na vida?
O rapaz sentiu as faces enrubescerem... No mesmo instante pensou em
Paris, em suas festas e condessas parentes de papas... Festas regadas a
champanhe e mulheres vistosas...
Evidentemente teve de respirar fundo e
controlar-se, pois estava diante de Dona Patrocínio e de seus amigos carolas.
Enfim disse que aspirava apenas poder continuar rezando “coroas” junto à tia, “com
proveito e descanso”.
O
doutor Margaride voltou à carga e disse que alguma “honesta cobiça” o rapaz
devia nutrir... Teodorico encheu-se de coragem e respondeu que gostaria muito
de “ver Paris”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_38.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto