Os recém-chegados àquelas águas estavam encantados.
Teodorico observou o semblante compenetrado dos passageiros... A maioria dedicava-se às orações. Esse era o caso de duas freiras que apertavam as contas de seus rosários com os polegares.
Alguns não conseguiram conter a emoção e permaneceram colados à murada do navio. Uns eram cristãos etíopes... Havia também os padres da Igreja da Grécia atentos às casas de Jafa. Ele não cansavam de fazer referências à luminosidade solar e o quanto a visão lembrava a de um sacrário iluminado.
O som de um sino na parte traseira da embarcação lembrava os de igreja no momento de chamar os fiéis para a missa.
(...)
Um pequeno barco conduzido
por remadores se aproximou do navio.
Teodorico entendeu que o
momento do desembarque estava se aproximando. Correu à cabine e se preparou
para deixar a embarcação... Pegou o capacete de cortiça e o ajeitou na
cabeça... Colocou as luvas pretas, escovou-se e passou perfume. Pronto para
pisar as terras de Nosso Senhor, colocou-se atrás de um franciscano (este
cheirava a alho) que aguardava a sua vez de passar para o barco.
Foi nesse momento que o
embrulho de papel pardo organizado pela Mary escapou-lhe dos braços e caiu na
direção em que os demais passageiros se aglomeravam... O pacote que guardava o
camisão de dormir de sua amada passou rente ao bote que já estava cheio de
passageiros.
Foi com desespero que ele
viu que o embrulho se perderia nas águas... Mas aconteceu que uma das freiras
apiedou-se do infortúnio do romeiro e se esforçou para resgatar o objeto.
À distância, Teodorico
agradeceu ao mesmo tempo em que disse que aquilo guardava algumas roupas... Fez
uma referência ao “sagrado amor de Maria” para salientar que era a um cristão
que socorriam.
À distância, ele viu que a
religiosa puxou o capuz e acomodou o embrulho por cima das contas do rosário
que estava sobre o seu santo colo.
(...)
O tipo que manejava o
leme fez uma saudação a Alá... Na sequência os árabes remaram. Eles cantavam
enquanto realizavam o seu trabalho.
Estavam se aproximando de Jafa, mas Teodorico só tinha olhos para o colo
(“terra de castidade”) da freira... Ali estava o pacote com a perfumada camisa
de Maricocas. Ele notou que a religiosa era bem jovem. Seu rosto “de marfim”
contrastava com o denso e sóbrio hábito escuro que lhe cobria a cabeça.
O semblante da jovem religiosa só podia ser de melancolia. Teodorico não
conseguiu parar de pensar na condição daquela desconhecida... Seus lábios eram
descorados... Não era para menos, já que se destinavam apenas a “beijar os pés
arroxeados do cadáver de um deus”.
Não havia como compará-la à doce e sensual Mary.
Aquela freirinha podia ser entendida como “um lírio ainda fechado e já murcho
na umidade de uma capela”. Que tipo de vida ela levava? Seu cotidiano só podia
ser lamentável! Certamente toda aquela palidez só podia ser resultado de seu
imenso temor a Deus.
Para o Raposo, a freirinha
só podia ser uma tola... Sua existência era muito pobre! Mas que criatura
“estéril”. Ela podia imaginar o que levava no casto regaço? O perfume e o calor
da camisa ultrapassariam o papel e contaminariam o colo da religiosa recatada?
Subiriam ao seu capuz?
À distância, Teodorico chegou a pensar que o rosto da jovem religiosa
corou um pouco... Num certo momento imaginou que ela encheu-se de perturbação
por dentro do severo hábito. Não era possível que o movimento de cabeça que ela
fez tinha por objetivo reparar-lhe a escura barba!
Foi por um curto
instante... Logo seu rosto voltou à frieza... Bem podia ser que a cruz de ferro
que trazia ao peito a tivesse chamado à contrição. A religiosa que a
acompanhava sorria para o mar, para as pessoas à sua volta, inclusive para
Topsius. Sua paz interior se revelava no semblante maduro.
(...)
Logo que desembarcaram,
Teodorico se aproximou da jovem religiosa... Retirou o capacete e agradeceu...
Depois, como se tivesse a necessidade de justificar a procedência do pacote,
disse que a perda do pacote lhe traria grande desgosto, pois “se tratava de uma
encomenda, uma caridade, de sua tia para Jerusalém”.
Sem dizer qualquer palavra, a freirinha estendeu-lhe o embrulho. O
português observou seus magros e pálidos dedos... Comparou-a à Nossa Senhora da
Agonia.
Separaram-se e ele ainda viu que elas tomaram o
caminho de uma escada onde um cão morto apodrecia.
Tola...
Bem tola... Para o Raposo era isso o que a jovem religiosa era.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_43.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto