sábado, 21 de outubro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – tumulto no desembarque; o embrulho de papel pardo quase se perdeu no mar; a lembrança de Maricocas foi parar no colo de uma jovem religiosa; mais mentiras para manter aparência beata

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_20.html antes de ler esta postagem:

Os recém-chegados àquelas águas estavam encantados.
Teodorico observou o semblante compenetrado dos passageiros... A maioria dedicava-se às orações. Esse era o caso de duas freiras que apertavam as contas de seus rosários com os polegares.
Alguns não conseguiram conter a emoção e permaneceram colados à murada do navio. Uns eram cristãos etíopes... Havia também os padres da Igreja da Grécia atentos às casas de Jafa. Ele não cansavam de fazer referências à luminosidade solar e o quanto a visão lembrava a de um sacrário iluminado.
O som de um sino na parte traseira da embarcação lembrava os de igreja no momento de chamar os fiéis para a missa.
(...)
Um pequeno barco conduzido por remadores se aproximou do navio.
Teodorico entendeu que o momento do desembarque estava se aproximando. Correu à cabine e se preparou para deixar a embarcação... Pegou o capacete de cortiça e o ajeitou na cabeça... Colocou as luvas pretas, escovou-se e passou perfume. Pronto para pisar as terras de Nosso Senhor, colocou-se atrás de um franciscano (este cheirava a alho) que aguardava a sua vez de passar para o barco.
Foi nesse momento que o embrulho de papel pardo organizado pela Mary escapou-lhe dos braços e caiu na direção em que os demais passageiros se aglomeravam... O pacote que guardava o camisão de dormir de sua amada passou rente ao bote que já estava cheio de passageiros.
Foi com desespero que ele viu que o embrulho se perderia nas águas... Mas aconteceu que uma das freiras apiedou-se do infortúnio do romeiro e se esforçou para resgatar o objeto.
À distância, Teodorico agradeceu ao mesmo tempo em que disse que aquilo guardava algumas roupas... Fez uma referência ao “sagrado amor de Maria” para salientar que era a um cristão que socorriam.
À distância, ele viu que a religiosa puxou o capuz e acomodou o embrulho por cima das contas do rosário que estava sobre o seu santo colo.
(...)
O tipo que manejava o leme fez uma saudação a Alá... Na sequência os árabes remaram. Eles cantavam enquanto realizavam o seu trabalho.
Estavam se aproximando de Jafa, mas Teodorico só tinha olhos para o colo (“terra de castidade”) da freira... Ali estava o pacote com a perfumada camisa de Maricocas. Ele notou que a religiosa era bem jovem. Seu rosto “de marfim” contrastava com o denso e sóbrio hábito escuro que lhe cobria a cabeça.
O semblante da jovem religiosa só podia ser de melancolia. Teodorico não conseguiu parar de pensar na condição daquela desconhecida... Seus lábios eram descorados... Não era para menos, já que se destinavam apenas a “beijar os pés arroxeados do cadáver de um deus”.
Não havia como compará-la à doce e sensual Mary. Aquela freirinha podia ser entendida como “um lírio ainda fechado e já murcho na umidade de uma capela”. Que tipo de vida ela levava? Seu cotidiano só podia ser lamentável! Certamente toda aquela palidez só podia ser resultado de seu imenso temor a Deus.
Para o Raposo, a freirinha só podia ser uma tola... Sua existência era muito pobre! Mas que criatura “estéril”. Ela podia imaginar o que levava no casto regaço? O perfume e o calor da camisa ultrapassariam o papel e contaminariam o colo da religiosa recatada? Subiriam ao seu capuz?
À distância, Teodorico chegou a pensar que o rosto da jovem religiosa corou um pouco... Num certo momento imaginou que ela encheu-se de perturbação por dentro do severo hábito. Não era possível que o movimento de cabeça que ela fez tinha por objetivo reparar-lhe a escura barba!
Foi por um curto instante... Logo seu rosto voltou à frieza... Bem podia ser que a cruz de ferro que trazia ao peito a tivesse chamado à contrição. A religiosa que a acompanhava sorria para o mar, para as pessoas à sua volta, inclusive para Topsius. Sua paz interior se revelava no semblante maduro.
(...)
Logo que desembarcaram, Teodorico se aproximou da jovem religiosa... Retirou o capacete e agradeceu... Depois, como se tivesse a necessidade de justificar a procedência do pacote, disse que a perda do pacote lhe traria grande desgosto, pois “se tratava de uma encomenda, uma caridade, de sua tia para Jerusalém”.
Sem dizer qualquer palavra, a freirinha estendeu-lhe o embrulho. O português observou seus magros e pálidos dedos... Comparou-a à Nossa Senhora da Agonia.
Separaram-se e ele ainda viu que elas tomaram o caminho de uma escada onde um cão morto apodrecia.
Tola... Bem tola... Para o Raposo era isso o que a jovem religiosa era.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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