quinta-feira, 5 de outubro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – encomendas de lembrancinhas; Dona Patrocínio justifica a decisão de enviar o sobrinho à Terra Santa; advertências severas e um “desejo sagrado”, uma relíquia; livre para partir

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_5.html antes de ler esta postagem:

Todos quiseram abraçar o felizardo Teodorico. Ele perguntou-lhes que lembrancinhas gostariam de receber das terras sagradas.
O padre Pinheiro disse que ficaria muito agradecido se recebesse um pequeno frasco com um pouco da água do Jordão... José Justino já havia lhe pedido em segredo um pacote do tabaco turco, mas ali na frente de Dona Patrocínio pediu apenas “um raminho de oliveira” do Monte das Oliveiras... O doutor Margaride gostaria de receber uma fotografia do Santo Sepulcro...
E a tia Patrocínio, o que esperava que trouxesse da Terra Santa? Teodorico virou-se para ela sorrindo... Ela estava imponente no centro do sofá e todos a olhavam. Depois de breve silêncio, disse que esperava que o sobrinho fizesse uma viagem santa e que não se esquecesse de beijar cada pedra sagrada que encontrasse... Também não devia deixar de participar das novenas. Devia rezar um terço (ou a coroa) em cada lugar santo pelo qual passasse. Por fim, desejou que gozasse plena saúde.
(...)
Teodorico estava pronto para beijar-lhe a mão ornada por ricos anéis quando ela emendou um discurso sobre o quanto tinha notado que ele vinha sendo firme no propósito de não faltar em relação aos preceitos cristãos... Saudou-o por não se envolver em relaxações. Salientou que era por isso que ele contemplaria as oliveiras onde Nosso Senhor “suou sangue” e beberia da água do Jordão do santo batismo... Todavia a severa mulher deixou claro que não hesitaria em botá-lo para rua caso soubesse de maus pensamentos e relaxações durante a viagem... Ai dele se resolvesse desviar-se do caminho para perseguir saias!
Dona Patrocínio foi taxativa... De nada lhe adiantariam indulgências plenárias se fizesse a viagem para também pecar... Era bom que soubesse que o tocaria para a rua como a um cão.
Teodorico baixou a cabeça e como bem sabemos apavorou-se... Dona Patrocínio limpou os lábios e novo silêncio se fez... Disse que tinha mais algumas palavras para proferir... Os que a cercavam eram religiosos e magistrados de sua confiança e certamente os queria por testemunhas. Enfim diria o motivo que a levara a custear a viagem do sobrinho à Terra Santa...
(...)
O rapaz entendeu que as palavras que ouviria a partir de então seriam como que sacramentais... Por isso que dedicou-lhes o máximo de atenção... E foi assim que ouviu a tia dizer que, desde que sua irmã Rosa morreu, dedicara-se a dar-lhe as condições para que recebesse boa educação e para que tivesse uma alma elevada e voltada para a religião. Por fim, Dona Patrocínio revelou que esperava que ele lhe trouxesse “uma relíquia milagrosa” dos lugares santos. Uma relíquia a qual se apegaria com toda a sua fé e que a ajudaria a se libertar de aflições e doenças... Era isso o que esperava, pois ele mesmo devia tê-la em alta consideração...
Depois dessa falação emocionada (e emocionante também), uma lágrima escorregou da face da Dona Patrocínio... Foi contagiante! O doutor Margaride voltou-se para Teodorico no mesmo instante e disse que ele devia considerar todo amor que a Titi tinha por ele... Insistiu que ele contemplasse as ruínas com toda a sua atenção e que esquadrinhasse os sepulcros para encontrar uma relíquia para ela. Ele queria dizer algo como “uma relíquia que fosse à altura de todo amor e dedicação da Titi”.
O rapaz pareceu entender a dramaticidade da situação e bradou que, “palavra de Raposão”, lhe traria uma “tremenda relíquia”. Todos se emocionaram com o que ouviram.
Na sequência, o senhor José Justino não se conteve e lascou um beijo nas barbas de Teodorico.
(...)
No domingo, seis de setembro em que se celebra o dia de Santa Libânia, ele se dirigiu com todo o cuidado ao quarto da tia. Com precaução bateu à porta. Pela movimentação, pôde perceber que ela se levantou, caminhou lentamente e abriu a porta só o necessário para que a mão passasse para lado do sobrinho.
Ao ver a mão “escamada e cheirando a rapé”, Teodorico teve vontade de dar uma mordida, mas em vez disso, despachou um “beijo baboso”. A mulher disse apenas “adeus menino” e recomendou que levasse as suas “muitas saudades ao Senhor”.
Ele desceu a escadaria... Usava o capacete e carregava uma mala de couro nova e um saco de lona bem carregado... Não esqueceu o “Guia do Oriente”, que mantinha embaixo do braço.
Notou andorinhas nos beirais e ouviu o sino da capela de Santana chamando os fiéis madrugadores para a primeira missa.
A oeste os primeiros raios de sol indicavam a direção a tomar: Palestina... Já acomodado no veículo que o conduziria ao porto, levou um cigarro à boca. Enfim estava a caminho de Jerusalém.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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