Permitam-me essas considerações acerca do sonho do Raposo.
É que temos de dedicar mesmo especial atenção aos sonhos do protagonista de “A Relíquia” se quisermos fazer uma análise menos preconceituosa do texto de Eça de Queiroz .
Esse que descrevemos nas duas últimas postagens não foi o primeiro e nem é o último do romance.
Muitos leitores
estranharam as passagens que descrevem o sonho de Teodorico.
Penso que não devemos considerá-lo uma “revelação”.
(...)
Os sonhos que temos
são marcados pelos “recortes de nossa experiência” durante o dia (ou em tempos
mais remotos). Isso pode explicar o devaneio do Raposo.
É
raro os sonhos obedecerem o rigor cronológico... Personagens que não se
conhecem (ou que sequer são contemporâneos) podem dividir o mesmo “ambiente
onírico”.
Não é por acaso que
Adélia aparece no sonho...
Podemos pensar que Teodorico
alimentasse a esperança de que ela retornasse aos seus braços... O
relacionamento não terminou “bem resolvido” e é evidente que o rapaz guardava
rancor! Ela havia sido má com ele! O traiu! Talvez por isso ele a “vê” se
interessando pelo demônio. Talvez o seu inconsciente exigisse uma justificativa
para repudiá-la definitivamente.
(...)
Alguns tendem a crer
que a “participação” da Maricocas no sonho seja menor... Mas ela se explica na
medida em que se tratava de sua mais recente paixão...
A vemos no começo do
sonho, bela e com sua graciosa e impecável vestimenta. Na parte final,
Teodorico disse ao demônio que estivera em Alexandria, onde conhecera a
adorável garota... Não podemos esquecer que ele estava sofrendo por ter se
afastado dela... Estava apaixonado, isso é inegável, mas ele mesmo nutria sérias dúvidas a respeito do futuro
relacionamento.
Vimos que o diabo sentenciou que a Maricocas não era exatamente o que o
rapaz pensava... Talvez inconscientemente, Teodorico sentisse a necessidade de ouvir
algo que explicasse a incompatibilidade daquela relação.
(...)
Vimos que o sonho apresenta muito mais...
O conteúdo “ensinado pelo diabo” chega a ser
assustador... Mas ele pode muito bem ser entendido como um “apanhado” das
conversas anteriores de Teodorico com o erudito Topsius (ou de suas empolgadas
elucubrações).
Não podemos esquecer
que, apesar da postura contrária à religião, sua formação tinha muito de
religiosa. Enquanto a tia Patrocínio estivesse viva teria de mostrar-se
beato...
Não é por acaso que a “aparição” da velha carola decreta o final do
sonho.
(...)
Teodorico despertou
do sono...
Libertou-se da coberta, mas manteve o embrulho de papel pardo junto ao
peito.
Chegou
ao convés e respirou da atmosfera reconfortante... O mar estava tranquilo e
desde a serra soprava um vento refrescante que trazia o aroma da flor de
laranjeira.
Sim... Haviam chegado
à Palestina. Seus olhos pecadores a contemplavam... A cidade que avistou era
escura e cercada de pomares. Considerou a “santidade” do lugar e questionou se
os raios de sol que o atingiam eram os mesmos que iluminavam as demais
paragens.
De
repente Topsius anunciou aos gritos que aquela era Jafa... Explicou que se
tratava da cidade mais antiga de toda a Ásia... Datava de antes do Dilúvio e no
passado se chamava Jepo.
O alemão não largava
o cachimbo de louça e tinha ares de seriedade. Encarou o português e orientou-o
a retirar a touca para saudar com respeito aquela “anciã dos tempos, cheia de
lenda e de história”. Depois acrescentou que fora ali que Noé (chamou-o
borrachíssimo) construiu a arca.
Teodorico manifestou-se
admirado porque mal tinham chegado e as “coisas da religião” já apareciam.
Como
não manter respeito? Os demais passageiros tomaram ares piedosos... A
embarcação passou a lembrar uma capela sisuda... Um tipo trajando hábito
lazarista caminhou de um lado para outro a meditar o seu livro de orações.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_43.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto