O rapaz da recepção de bagagens do Hotel das Pirâmides era um patrício... Logo que viu a folha preenchida por Teodorico, disse que se chamava Alpedrinha e que estava à disposição para qualquer necessidade.
Não demorou e os dois lusitanos trocaram algumas palavras... Enquanto Alpedrinha cuidava da bagagem do recém-chegado ia falando a respeito de sua história... Era natural de Trancoso.
(...)
O rapaz lamentava o fato de até ter talento para a redação, chegara a
compor “um necrológio” e sabia “versos doloridos de Soares de Passos” (Antônio
Augusto Soares de Passos, escritor português do século XIX)... Mas após a morte
da mãe, tomou posse de sua parte da herança e decidiu seguir para Lisboa a fim
de “aproveitar a vida”. Frequentou a Travessa da Conceição, onde conheceu uma
espanhola chamada Dulce... Apaixonou-se e partiu com ela para Madri.
Alpedrinha
não se realizou na vida. Abriu-se com o Teodorico... Passou a contar-lhe que
tornou-se um viciado em jogos de azar... Dulce o traiu e, para piorar, foi
esfaqueado por um rival que pertencia aos quadros mais baixos da sociedade.
Depois de se tratar
do grave ferimento, Alpedrinha partiu para Marselha, onde passou por muitas
necessidades. Na sequência foi à Roma e engajou-se como sacristão em uma igreja
local. Mais tarde mudou-se para Atenas e trabalhou como barbeiro. Depois
estabeleceu-se na província grega de Moreia e instalou-se num barraco nas
proximidades de um pântano, de onde tirava o sustento na “pesca de
sanguessugas”.
Após
muito labutar, resolveu mudar-se para Esmirna (Turquia). De turbante e tudo o
mais, passou a viver vendendo água pelas vielas. Chegar ao Egito foi apenas um
detalhe, pois desde muito tempo sentia-se atraído pelo país... Terminava sua
história ali no Hotel das Pirâmides, onde exercia a humilde função.
(...)
Alpedrinha disse que
gostaria de saber como estava a política em Lisboa... Perguntou ao Teodorico se
ele não trazia algum jornal. Este passou-lhe todas as folhas de Jornais de
Notícias que serviam para embrulhar sua tralha.
(...)
O dono da espelunca
era um grego originário da Lacedemônia... Esforçava-se para se comunicar (em
castelhano) com os dois que acabaram de se hospedar.
O tipo vestia uma
sobrecasaca escura... Na altura do peito via-se uma condecoração qualquer...
Disse que seu estabelecimento era o melhor ambiente para se pernoitar em todo o
Oriente.
Teodorico notou que o
lugar era “pura decadência”. A mesa para refeição apresentava flores murchas de
um vermelho berrante... No recipiente com azeite podiam ser vistas moscas
mortas... O chão estava repisado e cheirava a vinho desperdiçado. O teto estampava
uma envelhecida pintura de extremo mal gosto (anjos e andorinhas pairavam junto
a nuvens rosadas) e além disso os candeeiros eliminavam uma fumaça que o
escurecia.
(...)
Topsius bebeu da cerveja local...
Teodorico notou que alguns tipos tocavam harpa e rabeca na calçada do
hotel. Ele não soube explicar, mas sentiu-se bem por estar ali. Talvez porque
entendesse que aquela oportunidade no Egito se resumisse à preguiça e
luminosidade.
Após o café, Topsius passou a fazer registros
sobre velharias locais e as “pedras do tempo dos Ptolomeus”. O Raposo acendeu
um charuto, chamou o Alpedrinha e disse-lhe que precisava rezar o quanto antes.
Acrescentou que desejava aventuras de amor.
O Raposo não podia
deixar de cumprir a promessa que fizera à tia... Rezaria em sua intenção, pois
ela recomendou-lhe “uma jaculatória a São José” assim que chegasse ao Egito. A
velha entendia que aquele solo era sagrado porque recebeu a Sagrada Família por
ocasião da perseguição de Herodes aos recém-nascidos.
A
aventura amorosa era demanda de seu coração cheio de ansiedade.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_15.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto