O estranho sonho teve prosseguimento...
Teodorico registrou que a cruz de Cristo desprendeu-se da colina e começou a se erguer... Rumou para o céu. O espaço foi tomado por inúmeros anjos que se dirigiram para a cruz e a sustentá-la. Havia os que estavam no alto e a puxavam por um espesso cordão de seda. Sem dúvida, o esforço dos seres alados era intenso e bem concatenado.
O Cristo ainda sangrava algumas pesadas gotas... Elas eram recolhidas pelos serafins, que as fixavam no céu para que permanecessem brilhando intensamente como belas estrelas.
Entre as nuvens mais altas estava “um ancião enorme de túnica branca”... Não era possível reconhecer sua fisionomia, mas via-se que suas alvas barbas conferiam-Lhe sisudez... Sua linguagem ”semelhante ao latim e forte como o rolar de cem carros de guerra” comandava “as manobras da Ascensão”.
(...)
Depois não se viu
mais nada.
O
demônio virou-se para Teodorico e disse que era o que tinham para ver...
Emendou que o episódio resultaria no surgimento de mais um deus e outra
religião. Lamentou que ela espalharia tédio tanto no céu quanto na terra.
Enquanto desciam a
colina, a criatura horrenda iniciou uma falação animada sobre religiões mais
antigas, da época de “sua mocidade”. Seus cultos e festividades eram
acalorados... E tudo se passava ali mesmo naquela costa do “Grande Verde”,
desde as imediações de Biblos até Cartago, e de Elêusis a Menfis.
Sim... Incontáveis
deuses! Havia os de incomparáveis beleza e perfeição, e também os de
reconhecida crueldade. Depois de breve interrupção, a aberração acrescentou que
todas aquelas divindades se misturavam à vida dos humanos, por eles
divinizada...
Os viventes os
adoravam... Admiravam seus “carros triunfais” e seu interesse pelas flores,
vinhos e virgens, muitas defloradas enquanto dormiam. As tribos se mudavam,
abandonavam gado e os rios que saciaram sua sede, mas não se esqueciam de
carregar “os seus deuses ao colo”.
(...)
O diabo prosseguiu
dizendo que aquele tipo de amor não mais seria experimentado pelos humanos. Na
sequência perguntou ao Raposo se ele estivera alguma vez em Babilônia...
Explicou que todas as mulheres dessa cidade, donzelas ou damas, retiravam-se
aos bosques sagrados em ocasiões especiais para se prostituir “em honra da
deusa Melita”. As ricas se deslocavam em belos carros puxados por búfalos e eram
escoltadas por escravas... As pobres caminhavam e levavam uma corda em torno do
pescoço.
Teodorico admirou-se ao ouvir que aquelas mulheres se acomodavam das mais
diversas formas... Algumas deitavam-se sobre um tapete e aguardavam como se
fossem reses que não podem escapar do abate... Havia as que permaneciam nuas e de
pé, tinham corpos brancos como mármores e escondiam a cabeça num véu escuro.
Posicionavam-se entre as árvores e sabiam que logo um tipo qualquer passaria
lançando moedas e dizendo que chegava “em nome de Vênus”... Havia o momento
certo de cada uma seguir o seu homem, fosse ele “um príncipe vindo de Susa com
tiara de pérolas, ou o mercador que desce o Eufrates no seu barco de couro”.
O diabo completou essa narrativa dizendo que aquelas eram noites de “luxuria
ritual” em que as florestas pareciam rugir. Falou ainda sobre “as fogueiras
humanas de Moloque” (talvez uma referência aos sacrifícios humanos oferecidos a
um deus local), sobre certa deusa e seus lírios que necessitavam de sangue... E
também sobre “os ardentes funerais de Adonis”.
Por fim, o diabo quis saber se Teodorico
estivera alguma vez no Egito...
O rapaz respondeu no
mesmo instante que sim... E emendou que em Alexandria conhecera a adorável
Maricocas.
O
demônio o corrigiu: "Não era Maricocas, era Ísis!"
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/10/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_19.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto