Na semana seguinte o Teodorico não quis saber de retornar ao casebre do Xavier... Só na outra é que decidiu que precisava conferir a condição do “parente afastado” e o da pobre família.
A noite de domingo se iniciava quando o Raposo se aproximou do local. Caía um leve chuvisco. Manteve certa distância enquanto se protegia (também dos olhares) debaixo do guarda-chuva. Mesmo assim foi notado por um senhor que foi logo lhe advertindo que o senhor Godinho havia sido levado de maca para um hospital... Isso explicava o motivo de o casebre estar totalmente fechado.
(...)
Teodorico retirou-se e desceu a rua... Sentiu-se sinceramente triste... De repente, seu guarda-chuva tocou no de outro tipo que também caminhava. Para sua surpresa o transeunte o chamou alegremente e tratou-o por “Raposão”. No mesmo instante ele concluiu que só podia ser alguém que o conhecia de Coimbra.
Então reconheceu um de seus colegas de hospedagem da casa das Pimentas. Era o Silvério, a quem os mais chegados chamavam de Rinchão. Este tipo estava passando o mês junto ao tio, o muito rico barão de Alconchel, grande proprietário no Alentejo...
Silvério seguia para a casa de certa Ernestina, jovenzinha loira que vivia na rua do Salitre. Ele convidou o amigo Raposão, pois com a Ernestina vivia a Adélia, “um mulherão!”
(...)
O
problema de Teodorico era que devia se recolher às oito horas... Tia Patrocínio
não perdoaria atrasos... Mas o Silvério falava como se o estivesse tentando...
O tipo contou sobre a “brancura dos braços da Adélia”, e isso deixou o rapaz
abalado.Os dois compraram pastéis e uma garrafa de vinho da Madeira... Logo chegaram à casa da garota. Adélia estava acomodada no sofá, vestia saia branca e tinha os pés descalços. A moça fumava “um cigarro lânguido”... Ernestina costurava o elástico de suas botinas.
Teodorico não demorou a se sentar do lado da Adélia. Permaneceu em silêncio, com o guarda-chuva entre as pernas... Notava-se seu acanhamento. Mas aconteceu que Ernestina e Silvério se retiraram abraçados para a cozinha em busca de copos. Ele resolveu trocar umas palavras com a beldade.
Ela contou que era de Lamego, bem mais ao norte do país... Teodorico estava mesmo sem jeito e disse qualquer coisa a respeito da tristeza que o tempo chuvoso trazia. Adélia chamou-o “cavalheiro” e pediu-lhe novo cigarro... Os movimentos dela faziam escorregar as mangas de seu roupão, e isso revelava-lhe os braços brancos e macios. Ele pôde certificar que o Silvério tinha razão, Adélia era mesmo “um mulherão”.
(...)
Aos poucos, Teodorico
sentiu-se mais à vontade... Ela quis saber como se chamava e ele disse-lhe o
nome no instante mesmo em que oferecia dos pastéis que estavam no prato preparado
pela Ernestina. Na sequência, Adélia revelou que tinha um sobrinho que também
se chamava Teodorico.A garota sorriu e sugeriu-lhe que se apartasse do guarda-chuva. Por que ele não o deixava a um canto da sala? Teodorico arranjou uma desculpa espirituosa e disse que era porque não pretendia se afastar dela por “nem um instantinho”.
Ela fez uma cócega lenta em seu pescoço... Teodorico se inspirou e tomou o resto de vinho que ela deixou no copo... Ernestina acomodou-se nos joelhos de Silvério e cantou um fado... A noite prometia...
Adélia aproximou o rosto junto ao de Teodorico e ofereceu-lhe um beijo que o abalou profundamente.
Mas a hora avançara... Foi quase que por acidente que Teodorico notou que os ponteiros do relógio da casa acusavam as dez da noite.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_14.html
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto