sábado, 16 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – ainda sobre a aversão de Dona Patrocínio aos que vivem atrás de relaxações; mais sobre os “sacrifícios” de Teodorico para ganhar a confiança da tia Patrocínio; roupa com cheirinho de incenso; o engodo da carta ultraconservadora

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_20.html antes de ler esta postagem:

A aversão de Dona Patrocínio aos relacionamentos era tão grande que tinha o hábito de vasculhar os colchões e baús de suas criadas... Em nenhuma hipótese admitiria encontrar fotografias, cartas ou cheiro de homem... E olha que a Vicência já nem tinha idade para arranjar namorados! E o que dizer da cozinheira, também velha e gaga? E de Eusébia, sua outra criada desdentada?
Enfim, Dona Maria do Patrocínio, que chamava de “relaxações” a toda e quaisquer interações entre rapazes e moças, não admitiria que as serviçais de sua casa se envolvessem em “caças às calças”.
Os religiosos e doutores advogados que frequentavam o casarão a conheciam bem e por isso quase sempre conseguiam evitar constrangimentos com comentários indevidos, como aqueles sobre “histórias de amor” que podiam ser lidas nos periódicos.
Certa vez, ela interrompeu o padre Pinheiro que falava a respeito de uma criada que se livrara do filho recém-nascido atirando-o a uma latrina. Dona Patrocínio exigiu respeito, mas que não se pense que era por indignação em relação ao crime! Sua repulsa era pelo “pecado da carne” cometido pela criada em questão e que resultara em sua gravidez.
Nessas ocasiões, Dona Patrocínio atirava seus novelos à mesa e os espetava com as agulhas de tricotar. Essas manifestações de ódio eram as de uma desvairada. Sem dúvida!
(...)
Por tudo isso, Teodorico procurava não cometer vacilações...
A tia fazia questão de vociferar de modo que ele pudesse ouvir que se alguém de sua família, “que comesse do seu pão, andasse atrás de saias, ou se desse a ‘relaxações’, havia de ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão”.
(...)

Então é isso...
Foi a muito custo que o rapaz conseguiu a confiança da tia rica.
E as permissões para perambular fora de casa até às onze e meia vieram a calhar...
Euletério Serra partira a negócio para a França. Então a Adélia, cada dia “mais fogosa” pertencia somente a ele.
(...)
Teodorico tomara suas precauções. Evidentemente não podia chegar em casa com o “cheiro do pecado”. Então arrumou um jeito de se livrar do perfume da Adélia e de tudo o que pudesse lembrar o seu leito.
O rapaz sempre carregava um pouco de incenso em sua algibeira. Jamais subia as escadas do casarão sem antes queimar um pouco do incenso no alojamento de sua égua. A fumaça “purificava” suas roupas.
Esse expediente funcionava muito bem...  Tia Patrocínio sabia logo que o querido sobrinho estava se aproximando e com satisfação comentava o quão bom era sentir o cheirinho de igreja.
(...)
Para convencê-la ainda mais a respeito de sua “aversão por saias”, Teodorico redigiu uma carta ultraconservadora a um de seus antigos condiscípulos, que residia em Arraiolos.
Evidentemente pretendia que o texto fosse lido pela tia carola... E é por isso que abandonou o envelope “perdido no assoalho”. Ele tinha certeza de que ela o pegaria.
Em síntese, Teodorico revelava que se desentendera com certo Simões porque este “convidara uma desonesta a uma casa”. E emendava que todos conheciam o quanto ele, Teodorico, não admitia este tipo de atitude pecaminosa e ofensiva à religião. Todos que o conheceram em Coimbra sabiam que ele, o Teodorico, detestava tais relaxações e que, assim sendo, jamais cairia “numa dessas refinadíssimas asneiras”.
(...)
Como não podia deixar de ser, a tia Patrocínio leu... E gostou do que leu.
Assim, cada vez mais confiante, Teodorico vestia sua casaca e beijava os dedos de sua protetora com todo respeito.
Dizia que ia assistir à apresentação de “Norma”, de Vincenzo Bellini.
Mas assim que se retirava tomava o rumo do Largo das Caldas, em busca da alcova de Adélia, o céu onde ele era o “santo Teodorico” envolvido no suave cheiro de pó-de-arroz da amada de longos, belos e fortes cabelos.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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