Teodorico permaneceu adormecido por alguns dias...
Pelo menos é essa a ideia que ele sustentou a vida inteira.
Certa madrugada o despertaram... Sua sensação foi a de que algo diferenciado, alguma “coisa santa”, estava para acontecer. Junto à cama, ele notou um tipo gordo que lhe fazia cócegas nos pés... O homem sorria e o chamava de “brejeirote”.
Gervásia explicou que aquele era o senhor Matias... Ele o levaria para longe, para a casa de sua tia...
Enquanto o criado o vestia com a sua surrada roupinha e o envolvia numa manta que havia pertencido ao senhor Rufino, Matias observava com atenção a precariedade do órfão. O guarda da alfândega o carregou no cola até a liteira.
(...)
As
estradas pareciam não ter fim... Teodorico permaneceu silencioso. Evidentemente
já suspeitava que não teria como imprimir resultados ao próprio futuro. O
senhor Matias estava acomodado à sua frente e eventualmente fazia gracejos para
animá-lo.
O Teodorico que
escreveu as memórias não sabe precisar a duração daquela viagem... Recorda-se
apenas que num final de tarde chegaram a um local lamacento, onde havia muitos
pinheiros que balançavam ao sabor dos ventos... O liteiro esbravejou, mas
conseguiu atravessar o ambiente desértico.
Ele também registra a
passagem por uma cidade durante a noite... O garoto de então ficou admirado com
a iluminação que “modernos candeeiros” proporcionavam. Teodorico destacou a
estalagem onde passaram a noite. No local havia um criado chamado Gonçalves que
conhecia o senhor Matias. Depois de servir-lhes a refeição, o homem permaneceu
à mesa a falar sobre certo barão e a inglesa que o acompanhava.
No momento de se
recolherem ao quarto, o menino passou por “uma senhora grande e branca” com seu
belo vestido de “sedas claras”... Aquela era a “inglesa do barão”... O ambiente
foi invadido por seu perfume estonteante.
A imagem daquele belo
corpo não saiu do pensamento do pequeno Teodorico... Recolhido à cama, pôs-se a
rezar as “aves-marias”... Entre as beatas frases da oração, emendava outras de
lamento sobre jamais ter roçado um corpo como o da estrangeira.
Aquela não foi uma noite tranquila... A oração em honra à Nossa Senhora
confundiu-se com uma estranha devoção à inglesa desconhecida... Em suas
memórias, ele registrou os dizeres que profanaram as “aves-marias”...
Podemos imaginar o menino esforçando-se para rezar ao mesmo tempo em que
se confundia cada vez mais por não conseguir se livrar da imagem da mulher do
barão: “O senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres, com um
rumor de sedas claras”...
(...)
A viagem prosseguiu...
Um coche puxado por
quatro cavalos avançou por vários povoados... De vez em quando o seu Matias
pronunciava os nomes das localidades. No fim de certo dia uma nova estalagem
foi alcançada. A refeição foi servida numa sala onde os hóspedes avançavam para
os talheres dispostos numa grande mesa... Ao Teodorico foi reservado um caldo
de galinha, que ele tratou de ingerir com a maior discrição... O seu Matias
sempre conhecia alguém, e dessa forma tinha assuntos e perguntas sobre o delegado
local ou a respeito do andamento de obras públicas na região.
Foi na manhã de um domingo que o coche alcançou Lisboa. Teodorico ainda
se lembra do enlameado Largo... Caminharam até outro veículo, uma luxuosa
carruagem, que os levou ao casarão.
O
menino ouviu o repicar de sinos ao longe... Certamente eles chamavam as pessoas
para a missa... Um grupo de soldados passou diante da propriedade. O seu Matias
carregou o menino em seu ombro. A bagagem, que se constituía de alguns baús,
foi carregada por um criado.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_12.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto