Teodorico garante que o objetivo de sua empreitada (o registro das memórias que detalharão a espetacular viagem à Terra Santa ao tempo em que Jesus passou pelo processo de Sua condenação à morte) não pode ser confundido com o daqueles que pretendem apresentar um “Guia Pitoresco do Oriente”.
O que o levou à produção textual foram motivações espirituais... Isso já foi destacado na postagem anterior. E essa é a causa de ele ter suprimido de sua redação “suculentas narrativas” que só serviriam para atender as aspirações dos que pretendem aumentar seus conhecimentos a respeito de “ruínas e costumes” da longínqua Palestina.
(...)
Ele acrescenta que o “país do Evangelho” é menos interessante do que o
Alentejo, sua terra natal. Se as terras bíblicas foram “favorecidas por uma
presença messiânica”, não foram contempladas pelas paisagens que tornam
esplendorosas as mais belas paragens.
Teodorico
não teria condições de falar sobre os locais por onde Buda ou Maomé andaram e
viveram, pois somente ouvira falar ou lera a respeito de Migadaia, Veluvana, o
vale de Rajágria (Índia) ou da caverna de Hira, Meca e Medina (Arábia)...
Mas a respeito das
terras por onde Jesus caminhou, sentia-se na plena condição de sentenciar que
se tratam de locais de “secura, soledade e entulho”. A respeito de Jerusalém,
afirma que se tratava de “uma vila turca, com vielas andrajosas, acaçapada
entre muralhas cor de lodo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes”...
Também
o rio Jordão não escapa de sua crítica. Para ele, o rio do batismo é barrento e
não poderia ser comparado ao curso de águas claras do Lima, que abastecia o
Mosteiro e saciava as raízes dos amieiros de sua propriedade. No entanto
reconhecia que as claras águas de Portugal jamais tocaram “os joelhos de um
Messias”.
Teodorico imagina que
seus escritos chegassem às mãos de curiosos que querem saber de detalhes que
lhe escapavam... Há quem queira saber por exemplo do “tamanho das pedras” ou
quanto se paga pela cerveja... Para esses, ele recomenda a leitura de “Jerusalém
passeada e comentada” (sete volumes impressos em Leipzig), do doutor Topsius,
alemão formado “pela Universidade de Bonn e membro do Instituto Imperial de
Escavações Históricas”.
(...)
Teodorico revela que
o citado doutor alemão foi seu companheiro durante a romagem à Terra Santa...
Topsius o cita em diversas passagens de seu texto tratando-o por “ilustre
fidalgo lusitano”. As páginas são recheadas de juízos e reflexões que o autor
atribui ao beato português em peregrinação. O recurso utilizado (evidentemente
as frases e pensamentos atribuídas ao Teodorico eram fictícias) foi utilizado
de modo a permitir ao intelectual tecer argumentos científicos e esclarecedores
a respeito do limitado entendimento (normalmente envolto em misticismo) das
pessoas sobre os locais bíblicos.
A respeito da
iniciativa de Topsius, que em diversas passagens de seu texto dava a entender
que o cristão da Península Ibérica não tivesse condições intelectuais de compreender
os vários templos, confundindo o que pertencia ao século I com o que era da
época das Cruzadas, Teodorico não considerou que fosse digna de denúncia ou
retaliação aos periódicos. Até porque, no entendimento do Raposo, as “falas” a
ele atribuídas não eram inferiores em “arrogância teológica” às de Jacques Bossuet.
(...)
Há um trecho da
referida obra de Topsius que Teodorico faz questão de lembrar e refutar. Como
veremos bem mais adiante, o trecho é polêmico e trata-se de importante peça no
desenrolar da história.
Topsius citou dois embrulhos que o lusitano levava desde Alexandria até
o monte Carmelo. O alemão afirma que o rapaz transportava os restos de seus
antepassados nos embrulhos... Mas será que o erudito alemão pensava mesmo que Teodorico
transportava os ossos dos avós? Isso não tinha o menor cabimento!
No entendimento de Teodorico, os burgueses liberais fariam um mal juízo
de sua figura ao lerem as considerações de Topsius... Se por um lado os
burgueses valorizam os bem posicionados socialmente e os de “boas famílias” com
suas excelentes residências, detestam “o bacharel, filho de algo, que passeie
por diante deles, (...) com as mãos
carregadas de ossos de antepassados — como um sarcasmo mudo aos antepassados e aos
ossos que a eles lhes faltam”.
Tinha o Teodorico o perfil dos que profanam as
sepulturas? Evidentemente também não se tratava de tipo que se importasse com ”fulminações”
que a Igreja despeja sobre os que são por ela processados... Mas isso é questão
que nem merece maiores reflexões... É o próprio Teodorico quem dá um arremate
ao caso.
Mas ele não deixa de salientar
que o alemão sabia muito bem o que ele transportava nos dois embrulhos de papel
pardo... Talvez numa segunda edição de sua obra, Topsius pudesse corrigir o
detalhe... Ele tinha conhecimento do que havia sido embrulhado no Egito e o que
havia sido embrulhado nas terras de Canaã...
Pelo
menos as “memórias” de Teodorico não faltariam com a verdade. Os que as lessem
saberiam exatamente o que os embrulhos guardavam.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_80.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto