Maria do Patrocínio deu a entender que não admitiria maiores aproximações. Dispensou Teodorico da sala chamando-lhe a atenção para que não mantivesse o dedo na boca... Orientou-o a seguir pelo corredor até a cozinha, onde estava a Vicência... Passaria pelo oratório, então devia ajoelhar-se diante dele e fazer o sinal da cruz.
(...)
O menino seguiu e viu
que junto ao oratório havia uma luz... Não fez o sinal da cruz conforme a tia orientara,
mas ousou abrir a cortina verde que o escondia. Então ficou deslumbrado com o
que viu... O local era todo revestido de seda roxa e nele havia “painéis
enternecedores em caixilhos floridos contando os trabalhos do Senhor”. Do altar
pendiam toalhas que chegavam aos tapetes do chão... Os santos eram de marfim e
madeira, e tinham auréolas lustrosas. Violetas e camélias enfeitavam e perfumavam
o ambiente.
Teodorico demorou-se na contemplação. Velas iluminavam duas “salvas
nobres de prata” (ricas bandejas) e também a cruz escura em que Nosso Senhor
Jesus Cristo estava cravado. Ele era todo de ouro e reluzia!
O
menino se aproximou até a almofada... Viu marcas de joelhos que só podiam ser da
tia acostumada a dobrá-los em oração e adoração às imagens. Para a criança,
aquele cenário era reprodução fiel do que devia ser o céu com seus anjos,
santos, “Nossa Senhora e o Pai de Todos”... E todas as entidades deviam ser
como o Cristo do oratório da Titi, de ouro!
E talvez tivessem pedras preciosas cravejadas!
O brilho de todas
essas entidades no céu fazia o dia... Os pontos mais brilhantes conseguiam atravessar
a negritude da noite e por isso as pessoas podiam ver tantas estrelas.
(...)
Vicência
serviu o chá ao Teodorico... Depois ele foi conduzido a um quartinho pegado ao
dela. Ela o ensinou a juntar as mãos e, de joelhos, fazer suas orações... Ele
tinha de erguer a face para o céu e proferir “padre-nossos” pela saúde de sua
Titi, pela alma de Dona Rosa e também pela alma de certo comendador Godinho,
que havia sido rico e santo enquanto viveu.
(...)
Depois de dois anos,
a tia Patrocínio enviou o sobrinho a um colégio interno, “dos Isidoros”, na
localidade de Santa Isabel.
Foi no internato que
Teodorico conheceu o Crispim (como sabemos desde o relato do prólogo, este viria
a se tornar seu cunhado).
O Crispim era “mais
crescido” e Teodorico se referia a ele como “filho da firma Teles, Crispim
& Cia. donos da fábrica de fiação à Pampulha”. Os dois tiveram uma relação
de amizade de muita proximidade e cumplicidade.
De acordo com o registro de Teodorico, o amigo possuía uma beleza que o
colocava em posição de destaque... Durante as missas de domingo era possível
vê-lo auxiliando os padres. Seus longos cabelos louros pareciam angelicais.
Não foram poucas as vezes em que o rapaz, ao passar por Teodorico nos
corredores vazios, o agarrou e deu-lhe beijos que marcavam seu rosto macio...
Durante as horas de estudos que os meninos realizavam à noite, o Crispim
passava-lhe bilhetinhos repletos de elogios eloquentes e promessas de
recompensas.
(...)
O trecho também descreve situações que nos
ajudam a entender um pouco da rotina do colégio interno... Assim ficamos
sabendo que:
* todas as quintas-feiras
os alunos deviam lavar os pés;
* certo Padre Soares os encontrava três vezes durante a semana para sabatiná-los
com questões sobre “doutrina” e também para falar a respeito dos feitos de
Jesus (Teodorico se recorda especificamente das ocasiões em que o religioso
falava sobre os eventos da Paixão; a respeito da maldade de Caifás; sobre uma terrível
árvore de espinhos que havia na Judeia...);
* o
momento mais aguardado pelos garotos era o do fim das aulas e início do
recreio;
* o pátio tinha um cheiro
muito desagradável por causa das latrinas que ficavam próximas;
* os mais crescidos se escondiam para fumar numa sala térrea;
*
na referida sala aconteciam “aulas de dança” com o velho mestre Cavinetti, que
ensinava passos de mazurca à moçada.
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto