Certa ocasião aconteceu de o Teodorico topar com o doutor Margaride à saída de uma confeitaria no Rossio... O rapaz estava bem vestido com sua casaca, pois se arrumara para o encontro com a Adélia... Fora à confeitaria para providenciar uns docinhos à base de ovos.
Era noite de exibição de “O Profeta”, ópera de Giacomo Meyerbeer, e o doutor Margaride estava a caminho do São Carlos. Ele ficou feliz com o encontro, assim poderiam seguir juntos ao teatro.
Teodorico dissera mesmo à tia que iria assistir à peça marcada por muita virtude. O rapaz não teve como escapar, então confirmou que também seguia para a encenação e que Dona Patrocínio havia aprovado sua iniciativa.
(...)
Não
havia o que fazer... Paciência! Em vez da bela companhia de sua amada,
permaneceria sentado junto ao magistrado e toleraria à maçante peça.
Logo que se acomodou
em sua cadeira, Teodorico notou que uma senhora, que estava instalada num
camarote próximo, desviava o olhar em sua direção com certa constância.
Obviamente
quis saber quem era a dona... Dirigiu-se ao doutor Margaride perguntando-lhe se
conhecia aquela senhora que ele mesmo já vira várias vezes “durante as missas
de sextas-feiras na Igreja da Graça”... O doutor respondeu que ela só podia ser
a Viscondessa de Souto Santos ou então a Viscondessa de Vilar-o-Velho. Isso
porque na fileira logo atrás estava o Visconde de Souto Santos...
No final das contas,
para Teodorico, pouco importava... Interessava que se tratava de uma
viscondessa e que, à saída do teatro, encontrou-a a esperar a sua carruagem. No
momento, ela o notou novamente e seus olhos se voltaram para onde ele estava.
Ao rapaz, pareceu que a mulher era altiva, elegante e “esplêndida”... Todavia
não deu para formular maiores hipóteses libidinosas sobre ela.
A única certeza que o
dominou foi a de que só poderia se aventurar com mulheres daquela estirpe a
partir do momento em que a riqueza da tia Patrocínio passasse para ele por
herança... Mas quando isso ocorreria? Quando a Titi morreria?
(...)
No momento em que
desembarcaram no Rossio, o doutor Margaride perguntou se Teodorico o
acompanhava ao Martinho, onde poderiam tomar chá com as “melhores torradas” de
Lisboa...
O estabelecimento já
se encontrava praticamente vazio... Numa mesa ao fundo estava um tipo
solitário, mas a iluminação a gás estava sendo diminuída aos poucos. O doutor
consultou seu relógio e garantiu que o rapaz teria tempo para chegar para as
orações do fim do dia junto à tia.
Teodorico o tranquilizou dizendo que Dona Patrocínio passou a confiar
mais nele e, por isso, permitia que ele ficasse até um pouco mais tarde na
rua... Margaride disse que ele bem o merecia, pois em tudo lhe fazia a
vontade... O próprio padre Casimiro havia lhe dito que a boa mulher passara a
ter confiança no sobrinho.
(...)
Teodorico sabia que o doutor e o religioso, que era procurador e
confessor de sua tia, eram amigos... Então passou a fazer algumas especulações para
conhecer um pouco do que o futuro lhe reservava.
O rapaz concordou a respeito da amizade da
tia... Mas na sequência lamentou que não sabia o que esperar do futuro, e é por
isso que até pensava em prestar concurso para o posto de delegado. Talvez
pudesse ingressar na alfândega como despachante...
Ele olhou para o
Margaride, mas não notou sinal de que este pudesse revelar algo de
substancial... Então prosseguiu dizendo que a tia é muito rica e que ele era o
seu único parente... Era o único herdeiro...
Sendo o doutor um grande amigo do padre Casimiro, certamente conhecia detalhes
do testamento de Dona Patrocínio. Mas o homem continuou em silêncio!
Uma
criada do estabelecimento trouxe a bandeja e cumprimentou o doutor falando
qualquer coisa a respeito de sua saúde. Margaride tocou a torrada e sentenciou
que se tratava de uma “deliciosa torrada!”
Teodorico apenas
concordou enquanto notava que o outro só tinha atenção para a própria
mastigação e goles de chá... Então o rapaz arriscou-se a reiniciar a sondagem
dizendo que, de fato, a Titi tinha-lhe amizade...
Dessa
vez o doutor Margaride resolveu conversar... Disse que era verdade que o rapaz
era o seu único herdeiro... Mas havia uma questão que ele parecia não saber.
Havia um rival!
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_22.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto