Teodorico continuou firme no seu propósito de mostrar-se o mais católico entre todos os que habitavam Lisboa...
Isso o exauria, mas o fato de ter se acertado com a sua Adélia o enchia de ânimo... Ao final do dia a encontrava perfumada e trajando roupão de quarto... Desde a cozinha, onde saboreavam vistosos morangos, podiam contemplar os quintais vizinhos. O que mais podia desejar?
Numa daquelas tardes agradáveis ocorreu de a moça pedir-lhe oito libras.
(...)
Aquilo
era uma novidade...
O rapaz só pensava
que tinha de atender de alguma forma à solicitação de sua amada. Mas de que
forma?
Enquanto
seguia para o casarão pensava em como resolver a situação... Talvez o padre
Casimiro pudesse lhe emprestar a quantia, mas o religioso estava em Torres a
cuidar de suas vinhas. Outro que podia se sensibilizar com sua aflição era
Silvério (o Rinchão, dos tempos de estudos em Coimbra), mas este estava em
Paris...
Havia o padre
Pinheiro, que vivia a reclamar dos problemas de saúde e de dores insuportáveis
nos rins. Com este, Teodorico sentia que possuía o trunfo de sempre manifestar
especial atenção às suas reclamações. Além do mais, ele o flagrara escapando de
local pecaminoso, uma “viela impura”, onde certamente estivera a satisfazer-se
com “mulheres da vida”.
Descartou a última possibilidade
e já se sentia amargurado quando se lembrou do José Justino. Somente o “piedoso
secretário da confraria de São José”, tabelião de Dona Patrocínio, poderia ajudá-lo.
E tanta certeza o dominou que já se via estendendo as oito moedas de ouro à
Adélia.
(...)
Foi assim que, na
manhã seguinte, Teodorico dirigiu-se ao cartório onde trabalhava o Justino...
Foi logo falando a respeito de um condiscípulo que passava por dificuldade
tremenda. Disse que o tipo estava tuberculoso e sequer tinha como se
alimentar... A narrativa apresentou um quadro dramático.
Teodorico deu a
entender que ele mesmo ajudava o moribundo que estava acamado numa precária
pensão no Largo dos Caídas. Enquanto falava sobre a condição do miserável,
fazia questão de garantir que as paragens eram indecentes e contaminadas pelo
pecado... Bons cristãos como eles ficavam horrorizados ao passarem por aqueles
becos.
Justino concordou. Ouviu ainda que o sobrinho de Dona Patrocínio fazia
companhia ao desgraçado, a quem lia orações e as histórias exemplares dos
santos. O tabelião se comoveu com o testemunho de abnegação cristã... Teodorico
percebeu e emendou que naquela mesma manhã estivera no oratório, onde pediu a
Nosso Senhor que o ajudasse a conseguir algum dinheiro para que pudesse auxiliar
o pobre condiscípulo.
O descaramento do moço não tinha limite... Ele disse que ouviu uma voz
que lhe dizia, desde o alto da cruz, que fosse se entender com o Justino. Era
por isso que ele estava ali! O próprio Nosso Senhor o orientara!
O tabelião ouviu-o com atenção e tornou-se pálido
no momento em que Teodorico revelou que a “voz do alto da cruz” anunciou que o
bom homem lhe daria oito libras para socorrer o rapaz.
Teodorico deu a
entender que era por ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo que estava ali... José
Justino convenceu-se e deu-lhe as oito moedas solicitadas.
(...)
Graças
à sua manobra, Teodorico satisfez a sua Adélia. Assim os dias que se seguiram
foram de sossego e paz de espírito.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_54.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto