sábado, 30 de setembro de 2017

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – Adélia pede oito libras a Teodorico; segredos do padre Pinheiro; uma mentira espetacular convence o tabelião José Justino

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_29.html antes de ler esta postagem:

Teodorico continuou firme no seu propósito de mostrar-se o mais católico entre todos os que habitavam Lisboa...
Isso o exauria, mas o fato de ter se acertado com a sua Adélia o enchia de ânimo... Ao final do dia a encontrava perfumada e trajando roupão de quarto... Desde a cozinha, onde saboreavam vistosos morangos, podiam contemplar os quintais vizinhos. O que mais podia desejar?
Numa daquelas tardes agradáveis ocorreu de a moça pedir-lhe oito libras.
(...)
Aquilo era uma novidade...
O rapaz só pensava que tinha de atender de alguma forma à solicitação de sua amada. Mas de que forma?
Enquanto seguia para o casarão pensava em como resolver a situação... Talvez o padre Casimiro pudesse lhe emprestar a quantia, mas o religioso estava em Torres a cuidar de suas vinhas. Outro que podia se sensibilizar com sua aflição era Silvério (o Rinchão, dos tempos de estudos em Coimbra), mas este estava em Paris...
Havia o padre Pinheiro, que vivia a reclamar dos problemas de saúde e de dores insuportáveis nos rins. Com este, Teodorico sentia que possuía o trunfo de sempre manifestar especial atenção às suas reclamações. Além do mais, ele o flagrara escapando de local pecaminoso, uma “viela impura”, onde certamente estivera a satisfazer-se com “mulheres da vida”.
Descartou a última possibilidade e já se sentia amargurado quando se lembrou do José Justino. Somente o “piedoso secretário da confraria de São José”, tabelião de Dona Patrocínio, poderia ajudá-lo. E tanta certeza o dominou que já se via estendendo as oito moedas de ouro à Adélia.
(...)
Foi assim que, na manhã seguinte, Teodorico dirigiu-se ao cartório onde trabalhava o Justino... Foi logo falando a respeito de um condiscípulo que passava por dificuldade tremenda. Disse que o tipo estava tuberculoso e sequer tinha como se alimentar... A narrativa apresentou um quadro dramático.
Teodorico deu a entender que ele mesmo ajudava o moribundo que estava acamado numa precária pensão no Largo dos Caídas. Enquanto falava sobre a condição do miserável, fazia questão de garantir que as paragens eram indecentes e contaminadas pelo pecado... Bons cristãos como eles ficavam horrorizados ao passarem por aqueles becos.
Justino concordou. Ouviu ainda que o sobrinho de Dona Patrocínio fazia companhia ao desgraçado, a quem lia orações e as histórias exemplares dos santos. O tabelião se comoveu com o testemunho de abnegação cristã... Teodorico percebeu e emendou que naquela mesma manhã estivera no oratório, onde pediu a Nosso Senhor que o ajudasse a conseguir algum dinheiro para que pudesse auxiliar o pobre condiscípulo.
O descaramento do moço não tinha limite... Ele disse que ouviu uma voz que lhe dizia, desde o alto da cruz, que fosse se entender com o Justino. Era por isso que ele estava ali! O próprio Nosso Senhor o orientara!
O tabelião ouviu-o com atenção e tornou-se pálido no momento em que Teodorico revelou que a “voz do alto da cruz” anunciou que o bom homem lhe daria oito libras para socorrer o rapaz.
Teodorico deu a entender que era por ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo que estava ali... José Justino convenceu-se e deu-lhe as oito moedas solicitadas.
(...)
Graças à sua manobra, Teodorico satisfez a sua Adélia. Assim os dias que se seguiram foram de sossego e paz de espírito.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas