Então é isso...
Em Coimbra, Teodorico pôde experimentar dias (e principalmente noites) de muita farra, álcool e aventuras amorosas... As tentações carnais o dominavam, mas o rapaz sabia que não podia permitir que a tia em Lisboa sequer desconfiasse de seu pecaminoso modo de ser.
Regularmente escrevia-lhe cartas... Seus registros a levavam a crer que ele permanecia o mesmo Teodorico que se pautava pelos gestos humildes e piedosos. Um tipo recatado e devotado aos estudos e que, fora isso, só encontrava tempo para as orações, novenas e celebrações na Sé. Os sermões que ouvia pautavam sua vida marcada por jejuns e devoção ao Coração de Jesus.
(...)
É
claro que quando chegava o verão, e Teodorico retornava ao casarão da Titi em
Lisboa, seus dias voltavam à maçada com o agravante de ter de assumir uma
personalidade totalmente avessa àquela que adotara em Coimbra.
Estando à vista da
tia, jamais se retirava de casa. Não ousava fumar durante o café e se recolhia “virginalmente”
ao quarto quando a noite se avizinhava. Evidentemente não se esquecia da longa reza
do terço no oratório antes de se deitar.
Ao notar o “comportamento exemplar” do sobrinho, Dona Maria do
Patrocínio perguntava se em Coimbra ele tinha tempo para o terço... Teodorico
sorria e garantia que não conseguia dormir se não tivesse antes rezado o “rico
terço”,
(...)
O
cotidiano do casarão continuava o mesmo... Inclusive aos domingos, quando os
mais chegados à Dona Maria do Patrocínio apareciam para partilhar dos bons
pratos servidos durante as refeições e para o colóquio sempre saudável.
Os comensais se mantinham
solícitos para com a dona da casa, que passou a se queixar do coração e da
bexiga. Além dos padres Casimiro e Pinheiro e do contador José Justino, as
reuniões passaram a contar com a presença do doutor Margaride, que, como sabemos,
era antigo frequentador das reuniões e partidas de gamão promovidas pelo Comendador
Godinho em Viana.
O Margaride se cansou
da papelada e acabou se aposentado das funções de juiz desde que seu irmão Abel
(funcionário da Câmara Patriarcal) falecera... Instalado em sua propriedade na
Praça da Figueira dedicava-se à leitura dos jornais e exatamente por isso tinha
sempre uma novidade para contar. E fazia isso impressionando os que o ouviam...
Bem típico, se considerarmos que em tempos passados “compusera duas tragédias”.
Ainda a respeito do
Margaride, Teodorico conta se tratava de um tipo chegado às pitadas de rapé, corpulento,
calvo e de sobrancelhas cerradas e escuras... Ele se aproximou sem cerimônia e,
com a “autoridade” de quem conhecera seu pai (violão ao peito a cantar a xácara
do Conde Ordonho), foi logo o “tratando por você”.
Teodorico tinha mesmo
motivos para gostar do Margaride... Além de o homem ter sido próximo aos seus
pais, sempre que podia o elogiava à Dona Maria do Patrocínio... Falava muito
bem de seu comportamento e sua inteligência... Sentenciava que o sobrinho
traria muitas alegrias a ela.
Margaride o comparava a uma preciosidade! Como aquele agrado todo era
feito em sua presença, Teodorico corava.
(...)
Foi o doutor Margaride que acabou colocando Teodorico em contato com um
parente afastado da família...
Aconteceu que num certo dia de agosto, os dois
passeavam pelo Rossio quando o doutor apontou para um tipo roto... Anunciou que
se tratava do Xavier, “teu primo, moço de grandes dotes”.
Esse Xavier era primo
do Comendador Godinho... Via-se que o rapaz de bigodes claros tivera vida
melhor no passado. Seu falecido pai, proprietário de cordoaria em Alcântara, deixara-lhe
herança de trinta contos que foram perdidos por terem sido mal administrados...
O moço era daqueles que se deixam levar pela imprudência.
Antes
de morrer, o comendador ainda arranjou um posto para o Xavier na Secretaria da
Justiça, onde recebia um ordenado de vinte mil-réis por mês. Mas sua situação
no momento não era nada boa, vivendo precariamente “com uma espanhola chamada
Cármen” e os três filhos dela.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/09/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_10.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto