quarta-feira, 12 de agosto de 2020

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – carta do manicongo D. Afonso ao rei D. Manuel; ataques aos costumes religiosos do povo para melhor se alinhar ao reino português e à fé católica; ilha de São Tomé e o entendimento do manicongo a respeito de um auxílio abnegado e cristão; nau carregada de preciosidades e o ambicioso donatário Fernão de Melo pretende tirar proveito das carências do reino do Congo; registros de D. Afonso do Congo a respeito do decepcionante “retorno” dado pelo donatário de São Tomé

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/08/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore.html antes de ler esta postagem:

Vimos que a sucessão de D. João Nzinga a Nkuwu foi marcada pela disputa entre dois irmãos, o cristianizado Mbemba a Nzinga e o “tradicionalista” Mpangu a Kitina... Como sabemos, Mbemba a Nzinga, batizado pelos portugueses, saiu-se vencedor e tornou-se o novo manicongo.
A última postagem sinalizou que D. Afonso (nome cristão de Mbemba a Nzinga) iniciou sua condição de chefe dos congoleses amargando a contradição... Para demonstrar que estava alinhado com as propostas civilizatórias dos portugueses, enviou o filho Henrique e o sobrinho Rodrigo de Santa Maria a Portugal com uma carta ao rei D. Manuel... A missiva tratava de sua vitória no conflito com os tradicionalistas e solicitava “alguns clérigos ou frades” para que sua gente pudesse aprender mais sobre a fé.
D. Afonso do Congo quis resolver de uma vez por todas a questão religiosa em torno da tradição de seu povo e ordenou o recolhimento de “estatuetas-imagens dos antepassados”. Elas eram cultuadas com devoção pelos congoleses, mas os missionários portugueses insistiam que não passavam de “ídolos” que nada tinham de sagrados.
Como era de se esperar, houve reação à medida imposta pelo manicongo... Ele tinha a intenção de destruir todos os objetos assim que fossem confiscados, mas percebendo que não teria como dar prosseguimento à sua iniciativa, recorreu ao auxílio dos portugueses que dominavam a ilha de São Tomé.
(...)
Essa ilha havia sido “descoberta” por João de Santana e Pero de Escobar em 1470, exatamente no dia do santo, e foi por isso que lhe deram o nome de “São Tomé”... Em 1485, D. João II a cedera como capitania a João de Paiva. Em 1493 a ilha foi repassada a Álvaro de Caminha. Este deu início ao povoamento, mas logo veio a falecer. Em 1499, D. Manuel cedeu ao fidalgo Fernão de Melo o cargo de governador de São Tomé na condição de donatário.
A ilha era povoada basicamente por degredados. Desde 1487 o governo de Portugal ordenava o envio de judeus forçados ao batismo cristão. Na distante localidade deveriam assimilar os ensinamentos cristãos/católicos.
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Foi em 1508 que o manicongo cristão D. Afonso, receando as consequências de suas imposições sobre os objetos religiosos, pediu auxílio ao nobre governador Fernão de Melo. Naturalmente ele esperava contar com um gesto abnegado e cristão da parte do aliado português. D. Afonso Mbemba a Nzinga se via em grave situação, já que os cristãos no Sundi eram bem poucos (ele, o primo Pedro e suas famílias). A esmagadora maioria se inclinava à veneração dos ídolos.
A nau que partiria da Mina com os padres Rodrigues Eanes e Antonio Fernandes com destino a Portugal pareceu-lhe providencial, já que a embarcação deveria permanecer ancorada por algum tempo em São Tomé. Aos dois padres solicitou que acompanhassem os jovens Henrique e Rodrigo e que levassem a carta ao rei D. Manuel, além de entregarem uma específica ao governador Fernão de Melo. Ao governador donatário da ilha o manicongo solicitava a visita de “alguns clérigos que ensinassem as coisas de Deus”.
(...)
Mas aconteceu que o fidalgo Fernão de Melo se encheu de cobiça ao ver o filho e o sobrinho de D. Afonso do Congo num navio carregado de preciosidades... Os jovens partiam para Portugal, onde receberiam formação religiosa, e eram acompanhados por “dois padres que, apenas por terem servido à Igreja entre os negros, voltavam com ‘mil e quinhentas manilhas e cinquenta escravos’”!
E foi assim que logo o manicongo percebeu que uma aliança com base nos ideais de solidariedade cristã seria algo impossível com o ambicioso donatário.
Fernão de Melo ouviu de alguns compatriotas que poderia obter muitas vantagens se estabelecesse “um esperto sistema de trocas com o Congo”. O navio que acabara de chegar apenas aguçou sua cobiça.
Registros do próprio D. Afonso Mbemba a Nzinga nos dão conta da resposta do fidalgo ao seu “pedido de apoio religioso”:

                   “um navio sem nenhuma coisa, somente um cobertor da cama e uma guarda porta e uma alcatifa e um céu de esparanel e uma garrafa de vidro, e assim nos mandou no dito navio um clérigo e vinha por capitão Gonçalo Peres e por escrivão João Godinho, o qual navio nós recebemos muito prazer porque cuidávamos que vinha em serviço de Deus, e ele vinha por grande cobiça”.

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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