terça-feira, 29 de dezembro de 2020

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – opiniões do velho mendigo sobre as esmolas, vingança contra a sociedade e acumulação de riqueza; a pobreza dos ricos e a riqueza dos mendigos; palavras certas rendem esmolas dos ricos aflitos; a miséria de tipos como Vieira de Castro; calculando a acumulação do velho mendigo em vinte e cinco anos de mendicância

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/08/deus-lhe-pague-peca-de-joracy-camargo_6.html antes de ler esta postagem:

Barata quis saber se o velho e experiente mendigo, com o qual trocava ideias durante a noite em frente à igreja, era contra a esmola... Em resposta ouviu que ele era a favor dele mesmo, “esmola ao seu favor”, e acrescentou que era contra os outros. O fato de seguir pedindo se explicava pelo fato de a própria sociedade assim o exigir... Era simples, pedindo esmolas se vingava da sociedade. Explicou que dessa maneira acabou se enriquecendo.
Barata se espantou e sem dar mostras de que acreditava no que acabara de ouvir perguntou se o amigo havia mesmo se enriquecido. O velho confirmou que, com seu ofício, se tornara riquíssimo... Mas então foi obrigado a se enriquecer?
Sem pressa de responder, o velho mendigo disse que a sociedade é “defeituosa”. O normal para todos é que o mendigo seja pobre para toda vida ou enquanto estiver recorrendo à mendicância. Depois acrescentou que os ricos é que são pobres (de espírito, de tranquilidade, fraternidade...), inclusive de dinheiro em alguns casos.
A cada frase do velho, Barata se sentia mais confuso. Confessou que não estava entendendo nada... Não pediu maiores explicações no mesmo instante porque viu um tipo distinto se retirando da igreja. Sem titubear, estendeu-lhe a mão e resmungou um “uma esmolinha pelo amor de Deus”... O homem prosseguiu com sua passada rápida sem conceder-lhe qualquer níquel. Como que a querer dar exemplo ao companheiro, o velho posicionou seu chapéu em gesto de pedinte e implorou dizendo: “Favoreça, em nome de Deus, a um pobre que tem fome!”. O tipo distinto depositou a esmola no chapéu e retirou-se visivelmente agitado. Barata espantou-se mais uma vez enquanto o companheiro misterioso lhe perguntava se conhecia o cavalheiro que acabara de sair da igreja...
Evidentemente Barata não tinha a menor ideia a respeito do distinto homem. O velho tratou de responder que aquele era certo Vieira de Castro, um milionário que presidia um rico conglomerado de fábricas de tecido... Na sequência observou o adiantado da hora... O que um homem tão rico buscaria numa igreja àquela hora? Barata saberia “o que significa um momento de contrição religiosa de um milionário?”
Mais uma vez o pobre Barata ficou sem ter o que dizer e o companheiro foi esclarecendo que homens como Vieira de Castro sofrem por serem egoístas e porque travam árduas disputas com empresários rivais... Uma condição miserável! Miséria pior do que a vivida pelos mendigos!
Barata espantou-se mais uma vez... Aquele distinto senhor poderia sofrer uma miséria maior do que a sua? O velho foi dizendo que a miséria do “ser mendigo” é das mais confortáveis e certamente faria inveja aos milionários...
(...)
Mendigo “genuíno”, Barata poderia pensar que o velho que lhe transmitia aqueles estranhos ensinamentos não podia servir de parâmetro para a comparação que ele mesmo estava propondo. Talvez por isso tenha voltado a insistir na explicação sobre ter sido obrigado a se enriquecer e a fazer fortuna.
O velho respondeu que sempre guardou tudo o que recebia de esmola. Simplesmente foi obrigado a guardar porque a própria sociedade o impediu de gastar... Para exemplificar o que queria dizer, mostrou as vestes desgastadas... Ganhou aquela roupa de esmola já fazia vinte e cinco anos e por “motivos óbvios” jamais a substituiu. Simplesmente não podia fazer isso, e dessa forma economizava o valor equivalente a dois ternos a cada ano.
Na sequência o velho acompanhou Barata numa série de cálculos sobre o quanto economizara durante os vinte e cinco anos de mendicância: o quanto poupou por não gastar com roupas novas; por não gastar com comida e gorjetas em restaurantes, pois sempre se contentou com os restos que lhe eram oferecidos; por não ter despesas com passatempos “como cinema, teatro, esportes e certos luxos” que para um mendigo só poderiam ser considerados inconvenientes.
O raciocínio parece ter mostrado satisfatoriamente ao Barata a possibilidade do mendigo se enriquecer na mesma medida em que, com a série de gastos com supérfluos, o rico poderia empobrecer.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas