Depois de colocar o padre intrometido em seu devido lugar, Teodorico dirigiu-se à tia para explicar o que ocorrera no hotel...
Então ele inventou que estava a rezar à Santa Maria do Patrocínio e que, de joelhos, pedia-lhe que proporcionasse muitos anos de vida à tia. No entanto, desde o quarto vizinho, uma inglesa herege tocava piano e cantava “tolices imorais” daquelas que se ouvem nos teatros... A “voz excomungada” desfiava o péssimo repertório aos gritos de “Sou o Barba-Azul, olé! Ser viúvo é o meu filé”...
Isso ocorreu também nas noites subsequentes... Então, houve certa ocasião em que, desesperado, decidiu sair ao corredor para esmurrar a porta do quarto da fulana para pedir-lhe o favor de se calar. Acrescentou que ele era cristão e que pretendia rezar.
O doutor Margaride manifestou que ele estava no direito de protestar. Teodorico emendou que o patriarca lhe dissera que ao seu favor estava a lei...
Retomando o caso, explicou que retornava ao seu quarto quando foi surpreendido pelo pai da pianista... Um tipo de barbaças, que trazia a bengala à mão.
(...)
Os ouvintes pareciam
magnetizados enquanto esperavam o desfecho do caso... Teodorico aproveitou para
caprichar e disse que, ao se deparar com o brutamontes inglês, simplesmente
cruzou os braços e falou educadamente que não pretendia participar de
escândalos bem “ao pé do túmulo de Nosso Senhor”...
Deixou
claro aos que o ouviam que desejava apenas rezar sossegadamente... Contudo o
barbaças pôs-se a vociferar palavras ofensivas à religião e ao sepulcro de
Nosso Senhor... Coisas que ele mesmo não tinha coragem de repetir aos amigos de
sua doce tia. Foi só então que avançou as mãos para o pescoço do inconveniente
inglês.
Dona Patrocínio quis
saber se o sobrinho havia machucado o agressor... Teodorico garantiu que sim, e
com toda a sua ferocidade. Neste momento, o padre Pinheiro falou das leis
canônicas e garantiu que elas autorizavam “a fé a desancar a impiedade”... O
senhor Justino não escondeu sua animação pelo desfecho, vibrou com a narrativa
que selava a vitória de um lusitano sobre o gringo.
Teodorico percebeu
que os amigos de Dona Patrocínio gostaram do que ouviram... Então, levantou
para bradar que diante dele ninguém podia surgir com “impiedades”, pois podiam
saber que revidaria violentamente. Disse isso e emendou que “em coisas de
religião” ele era uma fera.
(...)
Seus gestos e modo de
falar também se endereçavam ao padre Negrão... Ao que tudo indicava, ele não se
daria bem com aquele servo de Deus.
Certamente não foi
por mera coincidência que o tipo se encolheu. Para o religioso intrometido, a
entrada da Vicência com o chá e o rico jogo herdado do comendador foi
providencial. Cada um passou a se ocupar de torradas e chávenas, esfriando um
pouco o assunto que estava sendo abordado.
Os comentários que se seguiram foram mais leves... Em síntese diziam que
a viagem certamente havia sido instrutiva, um verdadeiro curso... Também
falaram a respeito da noite prazerosa que estavam tendo e do modo agradável
como Teodorico fazia a narrativa.
Justino se afastou para a janela e deu a entender que gostaria de ter
uma palavra apartada dos demais. Teodorico se aproximou do tabelião e os dois
se puseram a contemplar o céu estrelado... Sentindo-se protegido pelas franjas
das cortinas, o homem colou os lábios nas barbas do moço e perguntou a respeito
das mulheres “do caminho”.
Como o Raposo confiava do Justino, sussurrou-lhe
que elas eram de enlouquecer a qualquer um.
Os olhos do Justino
faiscaram e suas mão tremeram tanto que quase derrubaram a xícara.
(...)
Abafando o diálogo indiscreto, Teodorico comentou em alta voz que, de
fato, a noite estava bonita... Depois emendou que as estrelas não podiam ser
comparadas com as que contemplara às margens do Jordão.
No
mesmo instante, o padre Pinheiro chegou bem perto para perguntar se ele havia
se lembrado de lhe trazer um frasquinho com a água do rio santificado.
O rapaz aproveitou
para dizer de uma só vez que as encomendas dos amigos não foram esquecidas...
Além do frasquinho do padre Pinheiro, trouxera o “raminho do Monte Olivete” o
Justino e a fotografia solicitada pelo doutor Margaride. Tudo isso estava entre
as lembrancinhas que ele trouxera da Palestina.
Era
só a questão de se dirigir para o quarto e distribuí-las solenemente.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_22.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto