sábado, 24 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – do constrangimento à confiança ; momento solene e de emoção de dona Patrocínio ao desatar a fita vermelha; a camisa de Mary sobre o sacro altar do oratório; de vergonha e repúdio

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_22.html antes de ler esta postagem:

O grande momento se aproximava... Teodorico anunciou que tudo o que trouxera era “do melhor” e estava carregado de virtude.
Acrescentou que todos precisavam saber que a preciosa relíquia que entregaria à tia era uma prova de que, quando estivera em Jerusalém, seus pensamentos foram todos para ela e também para os sofrimentos de Nosso Senhor...
Suas palavras antecipavam que a relíquia só podia ser algo diretamente relacionado a Cristo. Isso ainda mais emocionou a velha, que se sentiu na obrigação de dizer que ele jamais seria abandonado. Em resposta, o rapaz beijou-lhe as mãos.
Era como que um pacto, e o próprio Teodorico registrou que o doutor Margaride e os padres presentes representavam a Magistratura e a Igreja como testemunhas.
(...)
Ele retomou o martelo e explicou que revelaria o que era a relíquia para que os presentes se preparassem para fazer as orações que julgassem as mais adequadas. Então tossiu e fechou os olhos... Seu semblante estava compenetrado no instante em que disse que se tratava da coroa de espinhos.
Dona Patrocínio soltou um gemido rouco e estremeceu, atirando-se para o caixote... Abraçou-o com ternura... Mas Teodorico não pôde deixar de notar a reação dos demais presentes no oratório. O doutor Margaride, por exemplo, passou a coçar o queixo. O senhor Justino afundou-se em seu colarinho. O padre Negrão virou-se para ele com a bocarra aberta.
Ele percebeu que eles desconfiaram e não esconderam sua incredulidade. Por isso mesmo, começou a tremer e a suar frio.
O padre Pinheiro parecia ser uma exceção, pois logo estendeu a mão para felicitar a Dona Patrocínio pela relíquia. Os demais se colocaram em fila para repetir o mesmo gesto.
(...)
Teodorico sentiu-se aliviado e confiante. Sem perder tempo, se aproximou do caixote para abri-lo com o formão do martelo. Seu gesto apavorou a tia Patrocínio, que gritou no mesmo instante. Como podia cravar a rude ferramenta naquela preciosidade?
Ele apressou-se a dizer que não havia perigo... E emendou que havia aprendido a manejar “essas coisinhas de Deus” em Jerusalém. Despregou a tábua e logo surgiu o branco algodão. Fez uma reverência e levantou o conteúdo do caixote para que todos apreciassem.
O papel pardo envolvido na fita vermelha foi revelado... Dona Patrocínio disse que podia sentir o perfume que exalava... Suspirou e sentenciou que “era de morrer!”
Tudo corria exatamente como Teodorico planejara... Enrubesceu no momento em que passou a dizer que somente a tia tinha o direito de desembrulhar a relíquia. Então, contendo a emoção, ela pegou o embrulho com todo o respeito... Dirigiu o olhar às imagens do oratório e colocou-o sobre o altar. Começou a desatar o nó com todo o cuidado e fazendo cerimônia.
Manipulou cada uma das dobras do papel como se estivesse lidando com “um corpo divino”... Enfim surgiu a “brancura de linho”.
(...)
Brancura de linho? Teodorico não pôde crer! Em vez da coroa de espinhos, o papel pardo guardava a camisa de dormir da Maricocas!
Mas que desfecho! Algo repugnante! As rendas da camisa impregnada de pecado deitadas sobre o altar, entre santos e flores, aos pés da cruz!
O cartão pregado no alfinete também estava lá! A luz das velas pareceu mais forte para que todos pudessem ler “Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!"...
Haveria dedicatória mais sensual? Aqueles tipos beatos não podiam avaliar.
(...)
O romeiro tremeu... Suas pernas vacilaram... Nem mesmo ele soube como se encolheu na cortina verde junto à porta...
Uma desgraça! Sentiu-se confuso e sem condições de avaliar o panorama que se alinhavou... O certo é que pôde ouvir as acusações do padre Negrão... O desafeto falava diretamente à dona da casa que (o que haviam presenciado) era um "Deboche! Escárnio! Camisa de prostituta! Achincalho à senhora Dona Patrocínio! Profanação do oratório!”
Desde o seu “vulnerável esconderijo”, o rapaz observou as botas do padre chutando a camisa branca da Mary para o corredor. Os amigos de Dona Patrocínio retiraram-se um após o outro sem nada pronunciar. As chamas das velas pareciam produzir uma luminosidade trêmula, como que se estivessem escancarando uma calamidade.
(...)
A velha ensopou-se no próprio suor...
Caminhou lentamente na direção da cortina. Seu aspecto era de provocar arrepios... Parou diante do sobrinho, que finalmente se sentiu trespassado pelo olhar velado pelos “frios e ferozes óculos” da velha.
A mulher vociferou um “porcalhão!” entre dentes cerrados... Depois retirou-se.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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