O grande momento se aproximava... Teodorico anunciou que tudo o que trouxera era “do melhor” e estava carregado de virtude.
Acrescentou que todos precisavam saber que a preciosa relíquia que entregaria à tia era uma prova de que, quando estivera em Jerusalém, seus pensamentos foram todos para ela e também para os sofrimentos de Nosso Senhor...
Suas palavras antecipavam que a relíquia só podia ser algo diretamente relacionado a Cristo. Isso ainda mais emocionou a velha, que se sentiu na obrigação de dizer que ele jamais seria abandonado. Em resposta, o rapaz beijou-lhe as mãos.
Era como que um pacto, e o próprio Teodorico registrou que o doutor Margaride e os padres presentes representavam a Magistratura e a Igreja como testemunhas.
(...)
Ele retomou o martelo
e explicou que revelaria o que era a relíquia para que os presentes se
preparassem para fazer as orações que julgassem as mais adequadas. Então tossiu
e fechou os olhos... Seu semblante estava compenetrado no instante em que disse
que se tratava da coroa de espinhos.
Dona
Patrocínio soltou um gemido rouco e estremeceu, atirando-se para o caixote...
Abraçou-o com ternura... Mas Teodorico não pôde deixar de notar a reação dos
demais presentes no oratório. O doutor Margaride, por exemplo, passou a coçar o
queixo. O senhor Justino afundou-se em seu colarinho. O padre Negrão virou-se
para ele com a bocarra aberta.
Ele percebeu que eles
desconfiaram e não esconderam sua incredulidade. Por isso mesmo, começou a
tremer e a suar frio.
O padre Pinheiro
parecia ser uma exceção, pois logo estendeu a mão para felicitar a Dona
Patrocínio pela relíquia. Os demais se colocaram em fila para repetir o mesmo
gesto.
(...)
Teodorico sentiu-se
aliviado e confiante. Sem perder tempo, se aproximou do caixote para abri-lo
com o formão do martelo. Seu gesto apavorou a tia Patrocínio, que gritou no
mesmo instante. Como podia cravar a rude ferramenta naquela preciosidade?
Ele apressou-se a
dizer que não havia perigo... E emendou que havia aprendido a manejar “essas
coisinhas de Deus” em Jerusalém. Despregou a tábua e logo surgiu o branco
algodão. Fez uma reverência e levantou o conteúdo do caixote para que todos
apreciassem.
O papel pardo envolvido na fita vermelha foi revelado... Dona Patrocínio
disse que podia sentir o perfume que exalava... Suspirou e sentenciou que “era
de morrer!”
Tudo corria exatamente como Teodorico planejara... Enrubesceu no momento
em que passou a dizer que somente a tia tinha o direito de desembrulhar a
relíquia. Então, contendo a emoção, ela pegou o embrulho com todo o respeito...
Dirigiu o olhar às imagens do oratório e colocou-o sobre o altar. Começou a
desatar o nó com todo o cuidado e fazendo cerimônia.
Manipulou cada uma das dobras do papel como se estivesse
lidando com “um corpo divino”... Enfim surgiu a “brancura de linho”.
(...)
Brancura de linho?
Teodorico não pôde crer! Em vez da coroa de espinhos, o papel pardo guardava a
camisa de dormir da Maricocas!
Mas que desfecho! Algo repugnante! As rendas da camisa impregnada de
pecado deitadas sobre o altar, entre santos e flores, aos pés da cruz!
O cartão
pregado no alfinete também estava lá! A luz das velas pareceu mais forte para
que todos pudessem ler “Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em
lembrança do muito que gozamos!"...
Haveria dedicatória mais sensual? Aqueles tipos beatos não podiam
avaliar.
(...)
O romeiro tremeu...
Suas pernas vacilaram... Nem mesmo ele soube como se encolheu na cortina verde
junto à porta...
Uma
desgraça! Sentiu-se confuso e sem condições de avaliar o panorama que se
alinhavou... O certo é que pôde ouvir as acusações do padre Negrão... O
desafeto falava diretamente à dona da casa que (o que haviam presenciado) era
um "Deboche! Escárnio! Camisa de prostituta! Achincalho à senhora Dona
Patrocínio! Profanação do oratório!”
Desde o seu “vulnerável
esconderijo”, o rapaz observou as botas do padre chutando a camisa branca da
Mary para o corredor. Os amigos de Dona Patrocínio retiraram-se um após o outro
sem nada pronunciar. As chamas das velas pareciam produzir uma luminosidade
trêmula, como que se estivessem escancarando uma calamidade.
(...)
A velha ensopou-se no
próprio suor...
Caminhou lentamente
na direção da cortina. Seu aspecto era de provocar arrepios... Parou diante do
sobrinho, que finalmente se sentiu trespassado pelo olhar velado pelos “frios e
ferozes óculos” da velha.
A
mulher vociferou um “porcalhão!” entre dentes cerrados... Depois retirou-se.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_86.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto