Depois de duas semanas após ter deixado Alexandria, Teodorico chegou a Lisboa... A carruagem do conhecido Pingalho o conduziu à casa da tia Patrocínio...
O rapaz animou-se ao ver o azulado céu de sua cidade e, enquanto o veículo rodou até o escuro portão, encheu-se de convencimento e de indisfarçável orgulho. Em seu retorno triunfante, sua figura lembrava a de um César.
Seu raciocínio era o de que sua existência havia passado por significativa mudança. Talvez por isso olhasse com desprezo as ruas e as singelas casas das imediações... Antes da viagem à Terra Santa, sua condição sempre fora a de submisso à Titi. Era vergonhoso saber que, apesar de “homem feito” e formado bacharel, para toda e qualquer saída tinha sempre de pedir-lhe a autorização. Havia mesmo quem o reconhecesse como “Raposito”, sobrinho de Dona Patrocínio e “dono de um cavalo”... Mas a partir de então todos o veriam de modo diferente.
Ele passaria a ser visto como o “distinto doutor Teodorico” que estivera nos santos lugares do Evangelho... Quantos religiosos viveram a mesma experiência? Bem poucos!
A peregrinação o credenciava... Seria visto quase como que autoridade eclesiástica! Passariam a chamá-lo “o grande Raposo”, homem comparável a Chateaubriand (François-René de Chateaubriand, político e intelectual francês que viveu entre os séculos XVIII e XIX), com capacidade de discursar na “Sociedade de Geografia” ou nos ambientes frequentados por tipos pervertidos.
(...)
No momento de
desembarcar, Teodorico agarrou o principal caixote e o apertou contra o peito.
Já
no pátio revestido de pedrinhas, avistou a tia acomodada ao fundo com suas
sedas e rendas escuras... Ao vê-lo, a mulher arregalou os olhos e deixou
escapar um sorriso.
Ele largou a relíquia
e correu para ela. Abraçou-a e sentiu os beiços frios roçarem sua barba. No
mesmo instante, os mesmos cheiros de outrora (rapé, formiga, capela) pareciam
trazê-lo de volta à rotina.
A velha observou o
quanto o amado sobrinho retornava queimado do sol... Ele foi dizendo que
trazia-lhe “muitas saudades do Senhor”. Ela garantiu que queria ouvir tudo e ao
mesmo tempo o acariciava como se tocasse uma imagem religiosa (a de “São Teodorico”).
A criada Vicência, que a tudo acompanhava, elevou a ponta do avental ao olho
lacrimoso.
(...)
A bagagem foi
descarregada pelo Pingalho.
Então Teodorico
ergueu o precioso caixote feito com o pinho de Flandres... Deu a entender que
havia sido devidamente abençoado e anunciou solenemente, sem arrogância, que
ali estava a “divina relíquia”, que pertencera ao Senhor, e que ele trouxera
especialmente para ela.
Emocionada, a velha Dona Patrocínio tremeu e tocou a caixa com todo
cuidado... Sem dúvida depositou fé de que aquilo lhe traria saúde e cura a
todas as suas aflições.
Piedosamente, a mulher subiu os degraus e passou pela “sala de Nossa
Senhora das Sete-Dores” para depositá-la no oratório. Teodorico a seguiu e,
dirigindo-se à cozinheira e à velha Eusébia, conclamava um "ora vivam! ora
vivam!" As mulheres se curvavam como se assistissem “à passagem do Santíssimo”.
(...)
O oratório estava enfeitado com camélias
brancas... Teodorico manteve-se em sua encenação e não se ajoelhou ou fez o
sinal da cruz... À distância, observou a imagem do Cristo de ouro no crucifixo.
Sem cerimônia, fez um “aceno familiar” e deixou escapar um leve sorriso... Tudo
como se se dirigisse a um antigo conhecido com o qual mantinha segredos
indizíveis.
O
procedimento de Teodorico no oratório não escapou à observação de Dona
Patrocínio... Ela ajoelhou-se sobre o tapete, deixando a almofada que costumava
usar para o rapaz. Levantou as mãos em adoração para a imagem... E também para
o sobrinho.
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto