domingo, 4 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – umas “reflexões bíblicas” no Horto das Oliveiras; ansiedade pelo retorno à terra natal; expectativa de um desfecho muito favorável

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_3.html antes de ler esta postagem:

Teodorico foi ao Horto das Oliveiras... Esperava curtir alguma sombra e fumar sossegadamente.
Passou pela porta de Santo Estevão e seguiu pela ponte do Cédron... Logo alcançou o jardim de Getsêmani. Um muro caiado de branco cercava o “pomar onde Jesus ajoelhou e gemeu sob a folhagem das oliveiras”.
(...)
O rapaz calculou que algumas das árvores deviam ser as mesmas que “ramalharam” sobre a cabeça de Nosso Senhor. Contou oito delas que estavam em adiantado estado de definhamento... Só estavam de pé porque umas escoras de madeira as sustentavam.
Qualquer cristão que visitasse o local refletiria sobre os momentos que antecederam a prisão de Cristo. Teodorico pensou que, muito provavelmente, enquanto Nosso Senhor se manteve recolhido em oração, anjos O espreitaram desde as copas carregadas de folhas...
Ele observou os troncos esburacados e percebeu alguns instrumentos de jardinagem pendurados neles. Evidentemente os poucos galhos estavam praticamente secos... Um ou outro exibia umas folhinhas “de um verde sem seiva”.
Os responsáveis pelo local cuidaram de cultivar uma pequena horta. Teodorico conferiu alguns canteiros com alfaces cercados por arbustos de alfenas... Junto ao muro havia outros cercadinhos destinados às cebolinhas e cenouras.
Havia nichos no muro que exibiam os apóstolos em louça... O lugar era bem agradável e cheirava a alfazema. O rapaz pensou que talvez Jesus pudesse acalmar a tormenta que O afligia se por aqueles tempos encontrasse a mesma suavidade.
(...)
De onde estava, Teodorico notou um velho frade, provavelmente o “guardião do jardim”, a regar uns vasos carregados de belas flores. Depois de sentar-se ao pé da oliveira que julgava ser “a mais antiga”, dedicou-se a outras reflexões mais pertinentes à sua própria condição.
O melancólico cair de tarde era propício... Ele encheu o cachimbo ao mesmo tempo em que sentiu-se satisfeito com os tempos que se avizinhavam... No dia seguinte iria embora da cidade carregada de cenários fúnebres... Logo retornaria à sua terra. Faltava pouco para avistar novamente “a serra fresca de Sintra”... Sua ansiedade o levava a vislumbrar as gaivotas dando-lhe a boa vinda tão logo a embarcação atracasse.
Era Lisboa que lhe vinha aos pensamentos... As brancas paredes de suas casas, seus telhados esverdeados pelas ervas...
Sobretudo pensava em sua chegada à casa de Santana. Imaginava-se chamando a Titi... Daria a entender que não podia se conter de tanta emoção e felicidade... A velha apareceria toda a tremer e com o seu tradicional fio de baba no queixo. E mais desequilibrada ainda se sentiria ao receber “a grande relíquia”.
Logicamente ele teria de fazer da ocasião o momento mais especial de todos... Falaria com humildade exemplar, mas internamente se encheria de orgulho ao ouvi-la chamá-lo “meu filho e herdeiro”... E isso diante de testemunhas graúdas, como seus amigos de longa data da igreja e do mundo das leis.
Mas o mais aguardado era o que viria depois de conquistar a total confiança de Dona Patrocínio... Em seus pensamentos, Teodorico não via o momento de ela começar a gemer das dores fatais, sinais de que seus últimos suspiros se aproximariam.
Essas suposições trouxeram-lhe o sorriso aos lábios. E como se a própria natureza o saudasse pelas conquistas vindouras, um pássaro cantou de leve em meio à madressilva acima do muro... Parece que isso animou ainda mais o seu coração cheio de esperança.
De repente ele passou a imaginar a tia no leito de morte. A via estirada, com um “lenço negro amarrado na cabeça”, cheia de angústia a apalpar “as dobras do lenços suado”, e toda ofegante de “terror do diabo”. Haveria morte mais dramática para uma beata como ela?
(...)
Quem sabe se num dia de maio ela já não estaria num caixão “bem pregado e seguro”? O mais era a cova, a putrefação e os bichos que a decomporiam!
Na sequência viria a quebra do “lacre do testamento” na rica “sala dos damascos”... Nesse momento especial, trataria o tabelião Justino com todo esmero... Certamente lhe ofereceria vinho do Porto e uns pastéis. É claro que teria de esconder sua satisfação! Teria de mostrar-se “carregado de luto”... Um amarrotado lenço esconderia o “escandaloso brilho” de sua face enquanto a fortuna do Comendador Godinho estivesse “passando para as suas mãos”.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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