Teodorico foi ao Horto das Oliveiras... Esperava curtir alguma sombra e fumar sossegadamente.
Passou pela porta de Santo Estevão e seguiu pela ponte do Cédron... Logo alcançou o jardim de Getsêmani. Um muro caiado de branco cercava o “pomar onde Jesus ajoelhou e gemeu sob a folhagem das oliveiras”.
(...)
O rapaz calculou que algumas das árvores deviam ser as mesmas que “ramalharam”
sobre a cabeça de Nosso Senhor. Contou oito delas que estavam em adiantado
estado de definhamento... Só estavam de pé porque umas escoras de madeira as
sustentavam.
Qualquer
cristão que visitasse o local refletiria sobre os momentos que antecederam a
prisão de Cristo. Teodorico pensou que, muito provavelmente, enquanto Nosso
Senhor se manteve recolhido em oração, anjos O espreitaram desde as copas
carregadas de folhas...
Ele observou os
troncos esburacados e percebeu alguns instrumentos de jardinagem pendurados
neles. Evidentemente os poucos galhos estavam praticamente secos... Um ou outro
exibia umas folhinhas “de um verde sem seiva”.
Os
responsáveis pelo local cuidaram de cultivar uma pequena horta. Teodorico conferiu
alguns canteiros com alfaces cercados por arbustos de alfenas... Junto ao muro
havia outros cercadinhos destinados às cebolinhas e cenouras.
Havia nichos no muro
que exibiam os apóstolos em louça... O lugar era bem agradável e cheirava a
alfazema. O rapaz pensou que talvez Jesus pudesse acalmar a tormenta que O
afligia se por aqueles tempos encontrasse a mesma suavidade.
(...)
De onde estava,
Teodorico notou um velho frade, provavelmente o “guardião do jardim”, a regar
uns vasos carregados de belas flores. Depois de sentar-se ao pé da oliveira que
julgava ser “a mais antiga”, dedicou-se a outras reflexões mais pertinentes à sua
própria condição.
O melancólico cair de
tarde era propício... Ele encheu o cachimbo ao mesmo tempo em que sentiu-se
satisfeito com os tempos que se avizinhavam... No dia seguinte iria embora da
cidade carregada de cenários fúnebres... Logo retornaria à sua terra. Faltava
pouco para avistar novamente “a serra fresca de Sintra”... Sua ansiedade o levava
a vislumbrar as gaivotas dando-lhe a boa vinda tão logo a embarcação atracasse.
Era Lisboa que lhe
vinha aos pensamentos... As brancas paredes de suas casas, seus telhados esverdeados
pelas ervas...
Sobretudo pensava em sua chegada à casa de Santana. Imaginava-se
chamando a Titi... Daria a entender que não podia se conter de tanta emoção e
felicidade... A velha apareceria toda a tremer e com o seu tradicional fio de
baba no queixo. E mais desequilibrada ainda se sentiria ao receber “a grande
relíquia”.
Logicamente ele teria de fazer da ocasião o momento mais especial de
todos... Falaria com humildade exemplar, mas internamente se encheria de orgulho
ao ouvi-la chamá-lo “meu filho e herdeiro”... E isso diante de testemunhas
graúdas, como seus amigos de longa data da igreja e do mundo das leis.
Mas o mais aguardado era o que viria depois de
conquistar a total confiança de Dona Patrocínio... Em seus pensamentos, Teodorico
não via o momento de ela começar a gemer das dores fatais, sinais de que seus
últimos suspiros se aproximariam.
Essas suposições trouxeram-lhe
o sorriso aos lábios. E como se a própria natureza o saudasse pelas conquistas
vindouras, um pássaro cantou de leve em meio à madressilva acima do muro... Parece
que isso animou ainda mais o seu coração cheio de esperança.
De repente ele passou a imaginar a tia no leito de morte. A via estirada,
com um “lenço negro amarrado na cabeça”, cheia de angústia a apalpar “as dobras
do lenços suado”, e toda ofegante de “terror do diabo”. Haveria morte mais
dramática para uma beata como ela?
(...)
Quem sabe se num dia
de maio ela já não estaria num caixão “bem pregado e seguro”? O mais era a cova,
a putrefação e os bichos que a decomporiam!
Na
sequência viria a quebra do “lacre do testamento” na rica “sala dos damascos”...
Nesse momento especial, trataria o tabelião Justino com todo esmero...
Certamente lhe ofereceria vinho do Porto e uns pastéis. É claro que teria de
esconder sua satisfação! Teria de mostrar-se “carregado de luto”... Um amarrotado
lenço esconderia o “escandaloso brilho” de sua face enquanto a fortuna do
Comendador Godinho estivesse “passando para as suas mãos”.
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto