O repertório de mentiras de Teodorico parecia não ter fim...
Sem o menor escrúpulo, o rapaz disse que esteve no deserto onde vivera o Batista e que, tal como o santo, alimentou-se de gafanhotos. A velha manifestou seu encanto mais uma vez dizendo que os gafanhotinhos deviam ser uma ternura... Certamente São João Batista deve ter apreciado o gesto de humildade. Será que os insetos não lhe fizeram mal à digestão? Ela quis saber.
Teodorico garantiu que até ganhou uns quilos... Contou que, na ocasião, ensinara o amigo alemão a aproveitar a oportunidade para “salvar a alminha”.
(...)
Todas
essas “boas novas” enchiam Dona Patrocínio de regozijo.
Acomodada na sua
tradicional poltrona entre o retrato do papa Pio IX e os óculos do Comendador
Godinho, virou-se para Vicência e sentenciou que o sobrinho retornara cheio de
virtude.
Enquanto
saboreava da marmelada, Teodorico acrescentou que, ao que tudo indicava, seu
comportamento em muito havia agradado a Nosso Senhor.
(...)
Ele percebeu que seus
menores gestos estavam sendo observados pela velha como se fossem santificados.
Suspirando, ela perguntou-lhe se trouxera orações daquelas que patriarcas e
frades sabiam infalíveis...
Teodorico respondeu
“de chofre” que trouxera muitas, e que as copiara das “carteiras dos santos”. E
elas atuavam eficazmente contra tudo quanto era doença e acidente! Havia as que
combatiam tosses, e as que deviam ser rezadas para “destravar gavetas”... Uma
especificamente era recomendada para “as vésperas de loteria”...
Dona Patrocínio quis
saber se não havia uma para as cãibras. Ia relatando que padecia deste problema
durante as noites, quando o rapaz a interrompeu para garantir que trazia uma
infalível. E que a tinha conseguido de um monge que se tornara seu amigo. Deixou
claro que o Menino Jesus costumava aparecer para o humilde religioso.
(...)
Teodorico foi se
enchendo de confiança.
Abusado, resolveu acender um cigarro... Jamais ousara fumar diante da
tia! Ela simplesmente abominava o tabaco, que considerava uma das maiores
emanações do pecado.
Todavia, em vez da repulsa, Dona Patrocínio manifestou o interesse de se
aproximar ainda mais do sobrinho. Arrastou a cadeira em sua direção interessada
nas rezas que ele havia anunciado. Disse-lhe que gostaria de tê-las para si.
Teodorico a ouviu dizer que aquilo se tratava de
nobre caridade. Então respondeu-lhe que sim, entregaria todas as orações...
Depois quis saber como estavam os seus padecimentos.
Dona Patrocínio
deixou escapar um gemido e respondeu que ia muito mal e que a cada dia se
sentia mais fraca. Parecia mesmo que estava a se desfazer. Mas sentia-se alegre
por saber que já não morria sem o gosto de ter enviado o estimado sobrinho à
terra de Nosso Senhor.
A mulher prosseguiu em suas lamentações a respeito das despesas e de sua
falta de saúde... De sua parte, Teodorico procurou esconder a face que denunciava
o seu contentamento.
Para não correr
riscos desnecessários, procurou animá-la. Disse que doravante ela não teria com
o que se preocupar... E não havia ele lhe trazido uma preciosa relíquia de
Nosso Senhor? Era tudo uma questão de se apegar a ela com fé para que “as leis
da decomposição natural” fossem vencidas.
(...)
Depois
de tranquilizá-la, Teodorico perguntou-lhe a respeito dos amigos frequentadores
da casa. Como estavam todos?
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_15.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto