Depois que a tia Patrocínio deixou o quarto, Teodorico refletiu sobre a única possibilidade que, no seu entendimento, o eliminaria do rico testamento: Se ela encontrasse em suas coisas o menor resquício que evidenciasse suas “relaxações” seria o seu fim!
Ao repensar as providências que havia tomado, considerou que não havia risco de o pecado cometido no Egito ser descoberto... Suas “relaxações” tinham se tornado fumaça.
As únicas testemunhas dos fatos pecaminosos eram a própria Maricocas luveira e o doutor Topsius... Ela havia se transferido para a remota Tebas, e naquele momento mesmo devia estar se divertindo com o italiano fotógrafo... Já o alemão devia estar instalado em um gabinete de universidade, e empolgado com a sua pesquisa sobre os Herodes.
A única prova material de seus “culpados delírios” experimentados “na cidade amorosa dos Lágidas” (a camisa de Mary) devia ter sido repassada a alguma prostituta de Sião. De tão usada “nos serviços do amor”, seu tecido se gastaria, as rendas se esgarçariam e, por fim, seu destino seria o “lixo secular”.
(...)
Restava apenas aguardar
que a velha se extinguisse...
O
rapaz estava ansioso... Será que ela ainda estaria viva no próximo ano? Essa
sua inquietação levou-o a soltar a voz numa prece à Santa Virgem Maria... Pediu
que a Santa Mãe de Deus providenciasse rapidamente o fim daquela existência que
tanto o estorvava.
(...)
Pronunciava as
palavras dramáticas enquanto a sineta do pátio acusava a chegada de alguém.
As badaladas eram
típicas do Justino... Depois ouviu-se novo repique, dessa vez “majestoso”...
Teodorico não teve dúvida de que o doutor Margaride também acabava de chegar.
Não demorou e a porta do quarto se abriu... Dona Patrocínio entrou atabalhoadamente
e disse ao sobrinho que era muito amiga do Justino e do doutor, sem dúvida eles
eram pessoas virtuosas. Mas com base no que ele mesmo havia lhe falado, achava
melhor abrir a preciosa relíquia num momento em que estivessem apenas as
pessoas da igreja...
Teodorico a ouviu sem deixar de observar a arrogância da velha, que se
considerava “membro da igreja” como os amigos padres que se reuniam em sua
casa. Depois achou graça por notar que, de fato, ela o estava vendo como uma “quase
pessoa do céu”, que tinha autoridade para sentenciar a respeito de certos
rituais.
Por fim, respondeu que o Patriarca de Jerusalém
havia recomendado que a santa relíquia devia ser revelada na capela, à luz das
velas, e “diante de todos amigos da casa”.
Na sequência,
recomendou à tia que dissesse à Vicência para limpar as suas botas... Sem
esconder a empolgação, Dona Patrocínio apressou-se a, ela mesma, pegar as botas
imundas. Ela se retirou levando os calçados, garantindo que logo eles estariam
de volta, e bem limpos.
(...)
Novamente sozinho, Teodorico pensou no quanto a tia estava mudada... Ela
passara a respeitá-lo e a admirá-lo. Olhou-se no espelho e ajeitou a gravata
enquanto espetava “uma cruz de coral de Malta” em seu cetim.
Em breve seria o
centro das atenções de todos os amigos da velha... Ele reinaria... Seria visto
como o mais santificado entre todos. Mas, intimamente, sabia que esperava outra
coisa. Se pudesse, apressaria a morte da tia...
Teria
de espancá-la?
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_18.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto