A mulher orou em agradecimento pela conclusão da viagem. Depois disse que seria bom saber qual era a relíquia no caixote... Assim teria uma ideia das velas que deveria acender.
Teodorico levantou-se dizendo que logo mais ela saberia, e garantiu que o patriarca de Jerusalém recomendara que as relíquias devem ser desencaixotadas à noite. Com ares de sapiência religiosa, orientou que mais quatro velas deviam ser acesas, pois até mesmo a madeira que guardava a relíquia era santificada.
Dona Patrocínio fez conforme o sobrinho lhe orientara... Deu um longo beijo na caixa e colocou-a sobre o altar. Na sequência cobriu-a com uma maravilhosa toalha de rendas.
(...)
Teodorico
esperou que ela se afastasse... Então, como se fosse mesmo uma autoridade
episcopal, passou seus dedos em sinal de cruz sobre a peça, dando a entender
que a abençoava.
A mulher a tudo
acompanhou cheia de ternura... Sempre atenta ao sobrinho, perguntou-lhe o que
deviam fazer na sequência. Ele respondeu que deviam jantar, pois estava com
muita fome.
(...)
Dona
Patrocínio saiu às carreiras para dar as ordens à Vicência.
O moço seguiu para o
quarto, que estava limpo e cheiroso, com as cortinas lavadas e engomadas, preparado
para recebê-lo.
Satisfeito com o que
viu, pôs-se a desfazer as malas.
(...)
Depois, por boas horas,
estiveram à mesa...
Como não podia deixar
de ser, foi Teodorico quem dirigiu a conversa sobre sua “santa jornada” às
Terras do Evangelho. Os assuntos pareciam não ter fim.
Em tudo o que estava
ao seu alcance, Dona Patrocínio se esforçou para demonstrar o quanto estava
feliz. Ela mesma estampou um coração e uma cruz sobre as iniciais do sobrinho,
feitos caprichosamente com canela em pó na travessa de arroz-doce.
Encantada, manteve os ouvidos apurados para ouvir a tudo o que o jovem
tinha a dizer... Ele caprichava na narrativa e enchia o peito para falar dos
“devotos dias do Egito”, marcados por seu sacrifício ao “beijar uma por uma as
pegadas que lá deixara a Santa Família na sua fuga”.
Sobre o desembarque em Jafa, destacou que conhecera Topsius... Disse que
o alemão era um sábio doutor em Teologia e que, com ele, havia acompanhado a
mais maravilhosas das missas.
Descaradamente prosseguiu com suas mentiras dizendo
que nas colinas de Judá havia interrompido a cavalgada para ajoelhar-se e,
diante dos inúmeros presépios, apresentar suas preces em nome da tia.
A respeito de
Jerusalém, garantiu que contemplara uma a uma de suas pedras santas... A cada
revelação carregada de beatitude que ouvia, Dona Patrocínio ia se enchendo de
encantamento.
E tanto se encantou que parou de comer... Ela suspirava e dizia que era
“santo” ouvir tudo aquilo... Disse mesmo que até lhe dava “uns gostinhos por
dentro”.
Teodorico
percebeu que sua tática estava dando certo... Sorriu com humildade e a observou
pelo canto dos olhos. Entendeu que ela estava enternecida e que até no falar
parecia mais mansa e fanhosa.
Era como se, enfim, a
asquerosa tia adquirisse um pouco de humanidade... Ele pensou que, se a
situação continuasse a evoluir tão favoravelmente, chegaria o momento em que a
transformaria em “macio veludo”.
(...)
Esse
entendimento, impulsionou Teodorico a maiores ousadias...
Ele disse que certa
tarde, enquanto rezava no Monte das Oliveiras, viu um anjo que passou bem perto
de onde estava...
Disse também que, na Igreja
do Santo Sepulcro, abriu o túmulo de Nosso Senhor e soltou um “grito para dentro”...
A velha beata ainda
mais se emocionava por saber que proporcionara ao sobrinho vivenciar
privilégios comparáveis apenas “aos de Santo Antão ou de São Brás”.
Teodorico
percebia o efeito positivo que suas mentiras estavam causando... Por isso
passou a falar sobre sua rotina de orações e jejuns. Teve o disparate de dizer
que, na mesma fonte utilizada por Nossa Senhora em Nazaré, rezou ajoelhado mil
ave-marias num dia de torrencial chuva.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_31.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto