terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – dona Patrocínio se enche de ansiedade e devoção pelo sagrado caixote, gestos e palavras do sobrinho; Teodorico não perde a oportunidade para iludi-la ainda mais com suas mentiras escabrosas

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_13.html antes de ler esta postagem:

A mulher orou em agradecimento pela conclusão da viagem. Depois disse que seria bom saber qual era a relíquia no caixote... Assim teria uma ideia das velas que deveria acender.
Teodorico levantou-se dizendo que logo mais ela saberia, e garantiu que o patriarca de Jerusalém recomendara que as relíquias devem ser desencaixotadas à noite. Com ares de sapiência religiosa, orientou que mais quatro velas deviam ser acesas, pois até mesmo a madeira que guardava a relíquia era santificada.
Dona Patrocínio fez conforme o sobrinho lhe orientara... Deu um longo beijo na caixa e colocou-a sobre o altar. Na sequência cobriu-a com uma maravilhosa toalha de rendas.
(...)
Teodorico esperou que ela se afastasse... Então, como se fosse mesmo uma autoridade episcopal, passou seus dedos em sinal de cruz sobre a peça, dando a entender que a abençoava.
A mulher a tudo acompanhou cheia de ternura... Sempre atenta ao sobrinho, perguntou-lhe o que deviam fazer na sequência. Ele respondeu que deviam jantar, pois estava com muita fome.
(...)
Dona Patrocínio saiu às carreiras para dar as ordens à Vicência.
O moço seguiu para o quarto, que estava limpo e cheiroso, com as cortinas lavadas e engomadas, preparado para recebê-lo.
Satisfeito com o que viu, pôs-se a desfazer as malas.
(...)
Depois, por boas horas, estiveram à mesa...
Como não podia deixar de ser, foi Teodorico quem dirigiu a conversa sobre sua “santa jornada” às Terras do Evangelho. Os assuntos pareciam não ter fim.
Em tudo o que estava ao seu alcance, Dona Patrocínio se esforçou para demonstrar o quanto estava feliz. Ela mesma estampou um coração e uma cruz sobre as iniciais do sobrinho, feitos caprichosamente com canela em pó na travessa de arroz-doce.
Encantada, manteve os ouvidos apurados para ouvir a tudo o que o jovem tinha a dizer... Ele caprichava na narrativa e enchia o peito para falar dos “devotos dias do Egito”, marcados por seu sacrifício ao “beijar uma por uma as pegadas que lá deixara a Santa Família na sua fuga”.
Sobre o desembarque em Jafa, destacou que conhecera Topsius... Disse que o alemão era um sábio doutor em Teologia e que, com ele, havia acompanhado a mais maravilhosas das missas.
Descaradamente prosseguiu com suas mentiras dizendo que nas colinas de Judá havia interrompido a cavalgada para ajoelhar-se e, diante dos inúmeros presépios, apresentar suas preces em nome da tia.
A respeito de Jerusalém, garantiu que contemplara uma a uma de suas pedras santas... A cada revelação carregada de beatitude que ouvia, Dona Patrocínio ia se enchendo de encantamento.
E tanto se encantou que parou de comer... Ela suspirava e dizia que era “santo” ouvir tudo aquilo... Disse mesmo que até lhe dava “uns gostinhos por dentro”.
Teodorico percebeu que sua tática estava dando certo... Sorriu com humildade e a observou pelo canto dos olhos. Entendeu que ela estava enternecida e que até no falar parecia mais mansa e fanhosa.
Era como se, enfim, a asquerosa tia adquirisse um pouco de humanidade... Ele pensou que, se a situação continuasse a evoluir tão favoravelmente, chegaria o momento em que a transformaria em “macio veludo”.
(...)
Esse entendimento, impulsionou Teodorico a maiores ousadias...
Ele disse que certa tarde, enquanto rezava no Monte das Oliveiras, viu um anjo que passou bem perto de onde estava...
Disse também que, na Igreja do Santo Sepulcro, abriu o túmulo de Nosso Senhor e soltou um “grito para dentro”...
A velha beata ainda mais se emocionava por saber que proporcionara ao sobrinho vivenciar privilégios comparáveis apenas “aos de Santo Antão ou de São Brás”.
Teodorico percebia o efeito positivo que suas mentiras estavam causando... Por isso passou a falar sobre sua rotina de orações e jejuns. Teve o disparate de dizer que, na mesma fonte utilizada por Nossa Senhora em Nazaré, rezou ajoelhado mil ave-marias num dia de torrencial chuva.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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