A boa conversa de Teodorico estava convencendo Dona Patrocínio de que ele passara por exemplar transformação após a romagem à Terra Santa.
Pelo visto, tudo o que havia planejado estava se concretizando... Ele também ficou muito satisfeito ao saber que a saúde da velha estava indo de mal a pior.
Como vimos, disfarçou o seu contentamento tranquilizando-a a respeito do efeito positivo que a devoção à preciosa relíquia poderia trazer-lhe. Por fim, perguntou-lhe a respeito dos velhos amigos frequentadores da casa.
(...)
O
padre Casimiro andava adoentado... Para a Dona Patrocínio, a indisposição se
devia às pragas rogadas por um desafeto. Os médicos consideraram problemas
cardíacos e recomendaram total repouso devido a um inchaço nas pernas.
A velha não se
conformava com a falta do amigo religioso... Mas animou-se ao informar que certo
Padre Negrão (pelo visto, sobrinho do Casimiro) a visitava para jantar e
conversar sobre coisas da religião.
Teodorico
não tinha ideia de quem fosse o mais novo frequentador da casa... A tia
explicou-lhe que o sacerdote era da provinciana Torres e que não tinha o hábito
de andar pela capital, pois queixava-se dos modos das pessoas dadas às “relaxações”.
Era em consideração a ela, e também para ajudá-la em seus negócios, que o
religioso se dispunha a “deixar a sua aldeia”. Por isso, e também por sua delicadeza
e préstimos, o considerava virtuoso.
A beata não poupou
elogios ao novo amigo religioso, que sabia falar “coisas que tocam”... Disse
que ele muito rezara para Deus protegesse Teodorico em suas passagens pelas
perigosas “terras de turcos”.
O padre Negrão
comparecia regularmente para jantar com a dona da casa... Mas excepcionalmente
naquele dia não apareceria. O Raposo ficou intrigado com a empolgação de sua
velha tia e com a novidade a respeito de mais este intrometido religioso, então
disse que em Jerusalém os padres e patriarcas só apareciam para jantar nas
casas de fiéis aos domingos.
(...)
Logo escureceu...
Vicência providenciou a iluminação para o corredor.
Teodorico dirigiu-se ao quarto e vestiu sua sobrecasaca, pois certamente
os estimados amigos de Dona Patrocínio apareceriam, e ele queria estar
apresentável.
Sorriu ao
contemplar-se no espelho... Aprovou a barba e a face queimada... Não podia
estar se sentindo melhor, pois a tia o acolhera exemplarmente com devoção e veneração.
Além do mais, ela não duraria muito.Em breve estaria morta... O testamento lhe seria favorável. Não tinha a menor dúvida! O seu raciocínio era simples... Dona Patrocínio deixaria a fortuna ao seu sobrinho porque era o mesmo que doá-la “a Jesus e aos apóstolos e a toda a Santa Madre Igreja”.
De repente a porta se abriu... Ela entrou no quarto com o seu tradicional aspecto de quem alimenta ódio por tudo o que é mundano... Fitou a mala da viagem com olhar feroz. Obviamente estava atrás de alguma evidência de pecado.
O rapaz adiantou-se, colocou-se diante da mala e, de braços abertos, pôs-se a dizer que a tia podia conferir a “mala que andara por Jerusalém”... Ela se certificaria que se tratava de bagagem “de um homem de religião”.
E para deixar claro que nada tinha a esconder, emendou que o amigo alemão, um tipo que sabia de tudo, chamava-o “santinho” e garantia que quando se praticava pecado durante as viagens sempre se traziam “provas na mala”... Não adiantava eliminá-las ou escondê-las, pois alguma coisa sempre ficava a denunciar o mal feito.
O rapaz demonstrou tranquilidade... Emendou que as palavras do companheiro de viagem foram proferidas diante de um patriarca, que as aprovou. Disse que não tinha nada a esconder e que a mala estava aberta... Não tinha o menor receio e ela podia “esquadrinhar e cheirar”... Garantiu que sentiria apenas o “cheiro de religião”.
Ele segurou umas ceroulas e meias e sugeriu que ela as cheirasse... É claro que não podia deixar aquelas roupas, pois andar nu é pecado! O resto era “religião”: o rosário, livro de missas bentinhos... E tudo do Santo Sepulcro!
Dona Patrocínio quis saber a respeito de dois pequenos embrulhos que estavam num canto da mala... Confiante, ele dispôs-se a abri-los no mesmo instante e anunciou que se tratavam de “frascos lacrados de água do Jordão”.
Ele segurou um em cada mão e os estendeu... Emocionada, ela beijou os dois invólucros. Um pouco de sua baba lambuzou as unhas de Teodorico, que a viu se dirigir para a porta.
Já de saída, a beata disse que estava a tremer... Mas era por causa de todos aqueles “gostos santos”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_17.html
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto