domingo, 11 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – assimilando o golpe da traição; alívio por saber que se aproximava o momento de deixar a terra de tantas experiências amargas; o alegre e abnegado Pote se despede; refletindo sobre o Alpedrinha e sua sina; esbarrando na mesma jovem religiosa da primeira viagem

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_10.html antes de ler esta postagem:

A sensação de ruína foi grande... Mas logo Teodorico considerou que o próprio planeta, a Terra, era o mais ultrajado... Quanta podridão na superfície do astro que “rola pelos céus”!
Voltou-se ao conterrâneo e perguntou se também ele recebera uma camisa da amante... Alpedrinha disse que ganhara um roupão noturno dela... Teodorico pôs-se a rir com as mãos na cintura, e foi em meio à gargalhada que perguntou se ela também o havia chamado de “meu portuguesinho valente”...
O rapaz respondeu que ela o agraciava dizendo-lhe “meu mourosinho catita”, e que isso era porque ele “servia com turcos”.
(...)
Também essa revelação havia sido demais!
Teodorico sentiu que poderia lançar-se ao divã e arranhá-lo com as unhas... Capitularia entre o desespero e o mais completo desprezo.
Mas no mesmo momento surgiram Pote e Topsius com a notícia de que uma embarcação havia chegado de Esmirna e que partiria para o Egito naquela mesma tarde. Teodorico manifestou todo seu contentamento acrescentando que já estava farto do Oriente. Como que por despeito, e agressivamente, passou a falar que daquelas terras só experimentara dias de muito sol e calor, traições, “botas pelos quadris” (referência à surra que levou em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_2.html), e isso sem contar os “sonhos medonhos” que o afligiram...
(...)
À tarde, quando já estavam diante da embarcação, Teodorico notou que sua alma enchia-se de um tipo de saudade da Palestina, das tendas que armaram sob o belo céu estrelado, e das expedições em meio a ruínas e “nomes sonoros”.
Sem dúvida, isso fez o rapaz lembrar-se de que nem tudo havia sido infortúnios naquela romagem... Pote se aproximou oferecendo-lhe um cigarro e anunciando que tratava-se do último tabaco de Alepo que podia lhe dar...
Teodorico sentiu o lábio tremer... E não conseguiu segurar a lágrima quando viu o Alpedrinha estender-lhe os braços em silêncio... Já instalado no barco, pôde ver o patrício a agitar seu lenço em sinal de despedida... Pote tinha as botas na água e também se despedia efusivamente.
(...)
Afastando-se dos caixões onde estavam guardadas as relíquias, Teodorico se aproximou da amurada da embarcação para observar o Alpedrinha por mais tempo... Ele havia se acomodado numas pedras e segurava o grande turbante branco... O Raposo pensou que definitivamente compreendia a grandeza do patrício, um tipo cheio de desventuras... Todavia ele encarnava, de acordo com os registros das memórias, “o derradeiro lusíada, da raça dos Albuquerques, dos Castros, dos varões fortes que iam nas armadas à Índia”.
O que impulsionava o rapaz às desconhecidas terras do Oriente, “de onde sobem ao céu os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei”, era “a mesma sede divina do desconhecido” que havia marcado a existência dos heroicos lusitanos do glorioso passado.
É claro que o patrício não levava às distantes paragens as mesmas crenças dos heróis do passado... O Alpedrinha não levava consigo cruz ou espada! Não seguia para nenhum combate em defesa de um monarca ou de Deus. O “lusitano moderno” era bem outro... Talvez o Alpedrinha fosse uma síntese do modo de ser dos portugueses de seu tempo.
(...)
As rodas da embarcação a vapor começaram a girar...
A tarde caía... Topsius fez reverência a Jafa gritando “Adeus, adeus para sempre, terra da Palestina!”... A escuridão que caía já não permitia avistar pomares e, entre eles, os muitos rochedos.
Também Teodorico resolveu lançar um aceno com o seu capacete... Afastou-se da murada enquanto dizia a si mesmo um “Adeusinho, adeusinho, coisas de religião”... Enquanto retornava para o seu canto, sentiu que uma longa capa o tocava... Virou-se e percebeu que se tratava da mesma religiosa que havia carregado no colo o embrulho pecaminoso da Maricocas quando chegaram àquele porto.
O rapaz entendeu que a jovem religiosa voltou o seu olhar para fitá-lo bem em suas “barbas potentes”... Pensou que era maravilhoso topar novamente com a mesma jovem dos castos joelhos. Por que o destino reservara-lhe um novo encontro com aquele “lírio de capela, ainda fechado e já murcho”?
A tentação levou-o a considerar que a ocasião podia ser especial para a desconhecida, e que talvez ela pudesse se inspirar no calor que dele emanava... Para que ela tinha de permanecer uma “estéril e inútil”, devotada a atirar-se “aos pés do cadáver de um deus”?
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas