A sensação de ruína foi grande... Mas logo Teodorico considerou que o próprio planeta, a Terra, era o mais ultrajado... Quanta podridão na superfície do astro que “rola pelos céus”!
Voltou-se ao conterrâneo e perguntou se também ele recebera uma camisa da amante... Alpedrinha disse que ganhara um roupão noturno dela... Teodorico pôs-se a rir com as mãos na cintura, e foi em meio à gargalhada que perguntou se ela também o havia chamado de “meu portuguesinho valente”...
O rapaz respondeu que ela o agraciava dizendo-lhe “meu mourosinho catita”, e que isso era porque ele “servia com turcos”.
(...)
Também
essa revelação havia sido demais!
Teodorico sentiu que
poderia lançar-se ao divã e arranhá-lo com as unhas... Capitularia entre o
desespero e o mais completo desprezo.
Mas
no mesmo momento surgiram Pote e Topsius com a notícia de que uma embarcação
havia chegado de Esmirna e que partiria para o Egito naquela mesma tarde.
Teodorico manifestou todo seu contentamento acrescentando que já estava farto
do Oriente. Como que por despeito, e agressivamente, passou a falar que daquelas
terras só experimentara dias de muito sol e calor, traições, “botas pelos
quadris” (referência à surra que levou em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2017/11/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_2.html), e isso sem contar os “sonhos medonhos” que o
afligiram...
(...)
À tarde, quando já
estavam diante da embarcação, Teodorico notou que sua alma enchia-se de um tipo
de saudade da Palestina, das tendas que armaram sob o belo céu estrelado, e das
expedições em meio a ruínas e “nomes sonoros”.
Sem dúvida, isso fez
o rapaz lembrar-se de que nem tudo havia sido infortúnios naquela romagem...
Pote se aproximou oferecendo-lhe um cigarro e anunciando que tratava-se do
último tabaco de Alepo que podia lhe dar...
Teodorico sentiu o
lábio tremer... E não conseguiu segurar a lágrima quando viu o Alpedrinha
estender-lhe os braços em silêncio... Já instalado no barco, pôde ver o
patrício a agitar seu lenço em sinal de despedida... Pote tinha as botas na
água e também se despedia efusivamente.
(...)

O que impulsionava o rapaz às desconhecidas terras do Oriente, “de onde
sobem ao céu os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei”, era
“a mesma sede divina do desconhecido” que havia marcado a existência dos
heroicos lusitanos do glorioso passado.
É claro que o patrício não levava às distantes paragens as mesmas
crenças dos heróis do passado... O Alpedrinha não levava consigo cruz ou espada!
Não seguia para nenhum combate em defesa de um monarca ou de Deus. O “lusitano
moderno” era bem outro... Talvez o Alpedrinha fosse uma síntese do modo de ser
dos portugueses de seu tempo.
(...)
As rodas da embarcação a vapor começaram a
girar...
A tarde caía... Topsius
fez reverência a Jafa gritando “Adeus, adeus para sempre, terra da Palestina!”...
A escuridão que caía já não permitia avistar pomares e, entre eles, os muitos
rochedos.
Também Teodorico resolveu lançar um aceno com o seu capacete...
Afastou-se da murada enquanto dizia a si mesmo um “Adeusinho, adeusinho, coisas
de religião”... Enquanto retornava para o seu canto, sentiu que uma longa capa
o tocava... Virou-se e percebeu que se tratava da mesma religiosa que havia
carregado no colo o embrulho pecaminoso da Maricocas quando chegaram àquele
porto.
O rapaz entendeu que
a jovem religiosa voltou o seu olhar para fitá-lo bem em suas “barbas
potentes”... Pensou que era maravilhoso topar novamente com a mesma jovem dos
castos joelhos. Por que o destino reservara-lhe um novo encontro com aquele “lírio
de capela, ainda fechado e já murcho”?
A
tentação levou-o a considerar que a ocasião podia ser especial para a
desconhecida, e que talvez ela pudesse se inspirar no calor que dele emanava...
Para que ela tinha de permanecer uma “estéril e inútil”, devotada a atirar-se
“aos pés do cadáver de um deus”?
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_12.html
Leia: A
Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto