domingo, 18 de fevereiro de 2018

“A Relíquia”, de Eça de Queiroz – da “Biblioteca Universal” – os maus procedimentos durante a viagem tornaram-se ações carolas na narrativa de Teodorico; para o doutor Margaride, o rapaz elevara-se um pouco ao céu; o padre Negrão e suas observações inconvenientes

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2018/02/a-reliquia-de-eca-de-queiroz-da_18.html antes de ler esta postagem:

Teodorico remexeu o copo com a água açucarada e pensou que logo que se tornasse senhor da casa colocaria um fim à comilança daquele adulador (o padre Negrão).
Justino ajeitou o colarinho, sorriu e perguntou como o jovem passara as noites em Alexandria... Quis saber se participava de alguma reunião e se conhecera uma família digna com a qual pudesse tomar chá.
Teodorico respondeu que sim, conhecera famílias em Alexandria... Todavia fez questão de enfatizar que sentia-se repugnado e não frequentava “casas de turcos”, todos eles infiéis. Depois ressaltou que após o jantar se dirigia a uma igrejinha “sem estrangeirices”.
Enfatizou ainda que após o cumprimento das devoções, encontrava-se com o companheiro alemão e os dois seguiam para uma grande praça... Salientou que os locais garantiam que era bem melhor que o Rossio... De sua parte, afirmou aos ouvintes, reconhecia que talvez o sítio fosse maior do que o Rossio, mas entre os egípcios sempre fez questão de sustentar que o logradouro lisboeta era o mais lindo, com seus ladrilhos, árvores, estátua, teatro...
O doutor Margaride gostou do que ouviu. E sem deixar de manipular sua caixa de rapé, disse que o ato do rapaz era comparável do dos Gamas e Albuquerques, sempre em defesa das boas coisas da pátria.
(...)
O jovem prosseguiu em sua palestra aos amigos da milionária tia...
Contou que à noite, ao voltar da igreja, encontrava-se com Topsius para um café... Contou isso deixando claro que quando se viaja torna-se necessário espairecer um pouco.
O padre Pinheiro sorriu e comentou que café era com os turcos mesmo... E ficou tão interessado que até aproximou sua cadeira para mais perto e perguntar se o café era mesmo forte, se tinha um bom aroma.
Teodorico respondeu afirmativamente e retomou seu depoimento. Disse que, após o café, os dois romeiros retornavam para o hotel e ficavam a estudar sempre com o apoio dos “santos Evangelhos”... Procuravam obter informações acerca dos locais que visitariam, sítios divinos onde não podiam deixar de rezar.
Ele garantiu que as noites passadas em conversações com Topsius iam muitas vezes até às onze... Foi um privilégio ter aquela companhia que muito contribuiu para a sua instrução, tanto é que o próprio doutor dizia que aquela experiência contribuiria para torná-lo um “chavão” (entendido) nos assuntos da religião.
Teodorico deixou claro aos que o ouviam que Topsius conhecia mesmo “as coisas santas de Cristo”. Assim, não poderia ter companhia mais apropriada em sua viagem. E depois de todos aqueles estudos e aprendizado com o doutor? Os dois tomavam um chá, rezavam o terço e assim encerravam o dia.
(...)
Neste momento, o doutor Margaride voltou-se para a Dona Patrocínio e sorriu... Depois sentenciou que o sobrinho viveu experiências que lhe proporcionaram “muita virtude”... Inclusive com o tal doutor alemão!
A mulher suspirou. E não só concordou como sentenciou que era tudo como se o rapaz “subisse um bocadinho ao céu”... Todos podiam notar... Seu depoimento “cheirava bem”, era santo!
Teodorico não quis deixar passar a oportunidade... Fez-se modesto e baixou lentamente as pálpebras. O padre Negrão intrometeu-se mais uma vez e disse que as almas de todos ali seriam ungidas se o moço passasse a falar a respeito das festividades religiosas, dos milagres e das penitências.
O palestrante não gostou da intervenção e observou que estava seguindo um itinerário. O doutor Margaride concordou e, citando Chateaubriand, disse que era daquela forma que faziam os “grandes e famosos autores”.
(...)
Retomando sua falação, Teodorico decidiu dirigir-se diretamente ao Margaride... Contou que partiram de Alexandria numa tarde de muita chuva e que ocorreu de uma irmã de caridade salvar um de seus embrulhos com lembrancinha da terra que fora pisada pela Santa Família... A religiosa resgatou o embrulho das “águas salgadas”... Depois ele ficou sabendo que aquela santa mulher já estivera em Lisboa, onde ouvira falar das virtudes de sua tia.
(...)
Como se vê, graças ao seu talento para a mentira, todo mau procedimento durante a viagem se tornava atos de virtude em sua explanação aos amigos da tia. Na sequência, ele passou a falar sobre a chegada a Jafa, onde, assim que a avistou desde a embarcação, subiu ao tombadilho e pensou em Dona Patrocínio, comparando-a ao formoso sol.
Leia: A Relíquia – Coleção “Biblioteca Universal”. Editora Três.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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