sexta-feira, 16 de setembro de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – explicando a pesquisa sobre os filmes e a transmissão de sinais ideológicos na prática; justificando a relação com a prática do ensino; entre a admiração e a sensação de que uma mentira está velada; falação ofensiva e inútil

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_16.html antes de ler esta postagem:

Roupão, barba por fazer, chinelos nos pés...
Tertuliano sentia-se em condição de inferioridade...
Não podia crer que numa discussão, que tinha tudo para assumir tons exasperados, pudesse ser rematada a contento. Ele pelo menos desejava que o relacionamento terminasse sem grandes traumas.
Principiou a falar dando a entender que discorreria sobre uma ideia... Mas Maria da Paz o interrompeu no mesmo instante querendo saber se o que tinha a dizer se referia a eles ou ao tal projeto com as fitas...
Tertuliano respondeu que explicaria a respeito do estudo que estava realizando... Sobre a relação falaria depois.
A moça estava impaciente, mas concordou que ele podia começar pelo assunto que achasse melhor.
(...)
O rapaz pensou sobre as palavras que havia dito ao funcionário da locadora quando inventou a tal pesquisa que tinha por objeto determinados filmes e as mensagens ideológicas que transmitiam no bojo de cenas e diálogos...
Quebrou o silêncio e deu início à sua narrativa mentirosa (que ele entendia “verossímil”, já que seria baseada na justificativa que forjara anteriormente).
Começou dizendo que tinha interesse de ver “uns quantos” filmes da mesma produtora cinematográfica (ela mesma podia conferir) porque lhe ocorreu estudar “as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, ou, para ser mais preciso, os sinais ideológicos que um determinado fabricante de filmes vai disseminando, imagem a imagem, entre os consumidores deles”... Explicou que tivera a ideia há algum tempo.
Maria da Paz quis saber como foi que, de repente, ocorrera-lhe tal inspiração... Afinal, o que aquilo tinha a ver com o seu ofício de professor?
(...)
O professor sentiu-se à vontade para responder... A pergunta da namorada encaixava-se no propósito que engendrara.
Então disse que durante o processo de ensino, ao estudarmos ou ministrarmos as aulas de História, uma série de “sinais ideológicos” vão sendo transmitidos ou assimilados conforme interpretamos fatos e utilizamos determinadas linguagens ou expressões. Empolgado, ressaltou que a “intencionalidade no uso da linguagem que fazemos” contribuía para a eficácia da incorporação dos “sinais ideológicos” na mentalidade dos envolvidos.
Tertuliano relacionou a situação que o intrigava (e isso ocorria porque era professor de História) ao cinema... Os produtores de filmes atuam sobre os conteúdos de interesse da História... De um ou outro modo “contaminam e deformam”... O cinema faz isso com “maior rapidez”... Evidentemente isso é intencional!
Ele quis mostrar que seu interesse estava em detectar esse processo... Disse que as produções cinematográficas propagavam generalizadamente “toda uma rede desses sinais ideológicos”. Era tudo muito bem orientado e ele estava disposto a estudar a questão.
(...)
Tertuliano esforçou-se... Deu a entender que sabia mesmo do que falava. Sorriu e pediu desculpa por não poder simplificar mais... Acrescentou que esperava esclarecer melhor quando passasse para o papel os resultados de sua investigação.
Apesar de o rapaz concluir dando a entender que a inteligência de Maria da Paz talvez não fosse suficiente para entendê-lo numa primeira explanação, ela o olhou com admiração...
Era uma simples funcionária de banco “de nível médio” e de modo algum lidava com qualquer “captação de sinais ideológicos”. É claro que tudo indicava que ele se debruçara sobre uma temática que envolvia um gênero de produção que não era sua especialidade...
Ela só podia reconhecer a idoneidade do “habilitado professor de História”...
Sua aparência foi de admiração... Mas houve instantes em que a voz do moço entrou numa espécie de desarmonia... Deixou escapar um “subtom” que parecia revelar que as palavras emitidas diziam a verdade, no entanto podiam estar escondendo uma mentira.
Não foi por acaso que, de repente, a fisionomia da moça se alterou... A mudança era notória e provavelmente se devia a pensamentos que lastimavam a si mesma ou ao Tertuliano. 
(...)
Ele percebeu que sua falação havia sido ofensiva e inútil... Comportara-se grosseiramente e não respeitou a inteligência nem a sensibilidade da frágil namorada.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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