Tertuliano entendia que a visita de Maria da Paz estava resultando em perturbadora... Primeiro de tudo porque ela o impediu de prosseguir com a verificação das fitas... Depois se enrolou todo ao justificar o trabalho de pesquisa sobre os “sinais ideológicos”... E ainda se complicou ao vê-la conduzir a conversa.
(...)
A mulher saiu com aquela frase sobre a “existência de uma ordem no caos”
e quase o colocou a nocaute!
Não podemos esquecer que
ele ainda conservava o propósito de colocar fim à relação... Mas estava ficando
difícil... Notou que estava tomado por um confuso sentimento de admiração e
ternura.
O café estava demorando a sair... O rapaz perdia-se
nesses pensamentos e avaliava que não poderia permitir que Maria ficasse
sozinha na sala... Esperta como se fazia notar, é bem provável que se decidisse
a colocar uma das fitas no aparelho para conferir o que o amado chamava de “sinais
ideológicos”.
Podemos imaginar o cenário... Maria da Paz reconheceria no ator
secundário (interpretando um funcionário de hotel ou porteiro da boate etc.),
gritaria em desespero e chamaria o dono da casa para ver o ator igualzinho a
ele... Então chamaria o fenômeno de qualquer coisa (Saramago sugere “bom
samaritano, providência divina, irmão de caridade”) menos de “sinal ideológico”.
(...)
Esses temores de Tertuliano foram afastados tão logo
Maria se aproximou com a bandeja com as xícaras, o açucareiro e algumas
bolachas.
Os dois tomaram o café em silêncio e tranquilidade... O rapaz não podia
esperar maior harmonia.
E tudo pareceu encaminhar-se para o bom termo quando, depois do café,
ela resolveu que arrumaria o “caos da cozinha”... Disse que o deixaria em paz
para realizar o estudo.
Foi com certo alívio que Tertuliano respondeu que não precisavam falar
mais sobre o tal estudo... Mas ele sabia que o seu outro problema (a relação
com Maria) estava bem mais difícil de ser resolvido.
O rapaz retirou-se para o banheiro, onde se barbeou e vestiu-se
decentemente... Na sequência seguiu para a cozinha a tempo de participar da
arrumação secando a louça que era lavada pela Maria.
(...)
Maria ergueu bem os braços
para ajeitar uma travessa...
Tertuliano não resistiu à
tentação e a agarrou pela cintura... No movimento deixou escapar um a das
xícaras que virou cacos no chão.
O moço agarrava-se
tão violentamente a ela que seria difícil concluir se o afeto por ela teria
sido maior no começo do relacionamento...
Também poderíamos imaginar a empolgação como típica
dos estertores de certas paixões... Saramago cita o “fenômeno da vela que se
extingue e levanta luz mais alta e insuportavelmente brilhante”...
Insuportável não por arder
os olhos, mas por ser a derradeira luz.
(...)
O casal retirou-se para a cama.
Saramago brinca com a
situação... “Um sobre o outro, literalmente enganchados de pernas e braços, nos
levaria a tirar respeitosamente o chapéu e a desejar que lhes seja assim para sempre”.
(...)
Quem poderia saber até quando a “vela arderia”?
Tertuliano pensava mais uma vez a respeito de sua condição e nas
contradições da existência... Aquilo tudo acabava de uma forma que não
esperava... Nesse sentido, teria perdido a batalha porque seu intento era o de
colocar um termo à relação com a moça com a qual acabara de se enroscar como se
louco estivesse.
Mas eventualmente temos de reconhecer derrotas para
alcançarmos a vitória num momento mais propício... Além disso, ao calcular a
necessidade de “desviar dos vídeos e do imaginário estudo sobre os sinais
ideológicos a atenção de Maria da Paz”, só podia pensar que se saiu vencedor numa
parte considerável da batalha.
(...)
Maria também refletia...
Ela também não esperava tal desfecho... Ao chegar ao apartamento tinha
certeza de que no final lhe restariam apenas lágrimas e decepção...
Talvez ela começasse a aprender que boa parte dos
entreveros de casais termine mesmo na cama... Pelo menos não falta quem pense
assim, como se o sexo fosse “a panaceia de todos os males físicos e morais”.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_19.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto