sexta-feira, 30 de setembro de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – a carta seguirá adiante; tempo de ligar para a mãe; conversa sobre os afazeres, “compromissos misteriosos” e a relação com Maria

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_27.html antes de ler esta postagem:

Tertuliano decidiu que ligaria mais uma vez ao primeiro número de telefone que havia coletado da lista... Se ninguém o atendesse, definitivamente a carta seria enviada sem maiores traumas.
Fez a chamada e aguardou até o último toque... Ninguém atendeu...
Isso significava que, enfim, podia iniciar o período que ele pretendia “de descanso”... Aproveitaria o domingo para assear-se e vestir-se de modo mais adequado.
Não eram horas para o almoço... Podia descer à rua e comprar um jornal... Depois teria tempo para preparar as aulas da segunda-feira... O livro sobre as civilizações mesopotâmicas também o aguardava...
De repente lembrou-se do sonho em que via um tipo que levava grande pedra às costas e dizia em alta voz que era um amorreu... Será que não era o código de Hamurabi?
Esse tipo de sonho é daqueles que cabem bem aos historiadores...
(...)
De fato, uma coisa tem mesmo a ver com a outra... O sonho levou-o a pensar no livro... Na pedra do sonho podia estar inscrito o código...
De modo inesperado, ao trazer o código às reflexões, Tertuliano lembrou-se de dona Carolina, sua mãe, e do muito tempo que passava sem telefonar para ela...
A senhora era muito simples... Vivia no interior... Obviamente sentia falta do filho, e era por considerá-lo muito ocupado que não o incomodava... Entendia que a leitura do rapaz rendia assuntos “para além de sua compreensão”...
Que não se pense com isso que a mãe de Tertuliano fosse iletrada... Ela tinha formação escolar e estudara História na sua época de Ensino Fundamental. Mas acrescente-se que nunca entendera muito bem como é que História seja “matéria” a ser ensinada. O enredo ensinado pela professora não seria fruto de sua imaginação? Os próprios livros podiam ser um apanhado geral das imaginações de seu autor!
Os romances estavam cheios dessas coisas... Era esse o gênero de leitura predileto da mãe de Tertuliano.
(...)
Já fazia um tempo que dona Carolina vinha se perguntando quando é que o filho telefonaria...
E nesse domingo foi isso mesmo o que aconteceu... O aparelho tocou e num instante estava a falar com o Tertuliano... Após os cumprimentos “do costume”, a senhora quis saber a quantas andavam os trabalhos na escola... O filho professor respondeu que tudo estava normal e que as atividades eram as de sempre (exercícios, chamadas, reuniões...)... Informou que em menos de um mês a visitaria, já que teria mais umas duas semanas de dias letivos e outra de exames...
Tertuliano adiantou que não poderia ficar mais de três ou quatro dias porque tinha coisas a resolver na cidade... Teria de dar umas voltas... A mãe quis saber... Que voltas seriam aquelas? As férias existiam para que a pessoa possa descansar do trabalho! Obviamente a escola permaneceria fechada!
O filho professor de História disse em tom tranquilizador que teria tempo de descansar... Mas não podia deixar de resolver alguns assuntos importantes...
A mãe logo quis saber se tais compromissos eram sérios... O rapaz respondeu que achava que sim... Mas essa resposta não convenceu... Tanto é que dona Carolina pôs-se a dizer que não os percebia, já que ou são sérios mesmo ou não são... Não é uma questão de “achar”...
É claro... Aquela foi apenas uma maneira de Tertuliano dizer... Todavia a mulher insistiu ao perguntar se os assuntos diziam respeito àquela amiga chamada Maria.
Ele disse que “até certo ponto”... Então a mãe o comparou a determinada personagem de um romance que estava lendo... Emendou que sempre que lhe faziam uma pergunta, respondia com outra...
Ele observou que a única pergunta que fizera até aquele momento foi sobre como a mãe estava passando... Ela explicou que era a primeira vez que seu filho se mostrava tão misterioso...
Tertuliano pediu para ela não se zangar... Ela sustentou ainda que era a primeira vez que ele sairia de férias sem tempo para permanecer ao seu lado...
Sabendo que a mãe havia ficado chateada, Tertuliano disse que depois lhe falaria tudo... Dona Cecília perguntou se tinha algo a ver com uma viagem... Ele esbravejou com mais essa, e respondeu que se fosse o caso teria lhe dito.
Ela queria saber o que Maria da Paz tinha a ver com a sua decisão de retornar depois de poucos dias... Tertuliano deu a entender que havia exagerado ao incluir o nome da namorada... Não estaria pensando em se casar novamente?
Ele garantiu que não... Mas que ideia!
Dona Carolina observou que talvez fosse bom pensar no assunto. Além do mais ele tinha de considerar que não era certo “empatar” a vida da outra... A este respeito Tertuliano quis deixar claro que nunca havia prometido casar-se com Maria.
Mas será que ele não conhecia as mulheres? Dona Carolina explicou que o tempo de namoro já devia ter alimentado em Maria promessas “não ditas”!
Tertuliano respondeu que conhecia as mulheres de seu tempo e não as da época de sua mãe. Ele concordou que conhecia pouco mesmo... Casara-se, divorciara-se... A mãe se intrometeu ao citar o caso com Maria... Tertuliano deu a entender que a relação com ela também “não contava muito”.
(...)
É claro... Na concepção da mãe ele estava sendo cruel com a garota...
Falaram um pouco sobre o “sentido solene” da palavra cruel... Ele observou que não sabia que dona Carolina tivesse “dotes de psicóloga”... Ela havia dito que certas formas de crueldade se disfarçam na indiferença e na indolência... E completou que jamais lera artigos de Psicologia, mas sabia interpretar as pessoas.
Despediram-se...
Tertuliano prometeu que conversariam melhor quando se encontrassem...
Dona Carolina pediu que não a fizesse esperar muito...
Ele garantiu que “de uma maneira ou outra neste mundo tudo acaba por se resolver”.
A mãe emendou que às vezes o pior ocorre... Então solicitou que se cuidasse.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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