Não foi para ouvir as explicações sobre o complicado projeto de pesquisa de Tertuliano que Maria da Paz o visitou...
Ela pretendia saber o que estava acontecendo com o relacionamento. Queria saber até que ponto podia contar com o outro na “busca de uma felicidade a dois”. Afinal de contas já fazia seis meses que estavam envolvidos.
É claro que o rapaz também vivia uma situação complicada... Sabemos que ele não tinha a menor condição de “abrir o jogo” com a namorada (é bom que se diga que sua intenção era o rompimento)... Teria condições de falar a respeito do ator secundário que era a sua “cópia viva”? Poderia contar que o tipo aparecia em vários filminhos de segunda ou terceira categoria, e que era em tudo idêntico a ele?
(...)
Talvez o mais correto fosse a moça esbravejar com
ele... Perguntar-lhe com severidade se o “estúpido discurso” a respeito da “patranha
dos sinais ideológicos” já havia se encerrado... Pretendia saber do futuro da
relação de uma vez por todas!
Acontece que sua situação ali era de total vulnerabilidade... Em vez de
exigir, Maria silencia.
Vemos Tertuliano cabisbaixo... Ele está preocupado...
Olha para os chinelos, mas seu pensamento está nos papéis que estão sobre a
escrivaninha... No meio deles está a lista com os nomes dos filmes e dos atores...
Os registros com riscos e interrogações, que nada têm a ver com sua falação a
respeito dos “sinais ideológicos”, estão escancarados a qualquer um que se
aproxime.
(...)
Ofereceu um café a Maria da Paz...
Poderia haver outra saída? Era preciso tirá-la de perto dos papéis!
Mais uma vez pensamos que seria melhor que ela disparasse uma ofensa e
deixasse claro que não era esse o motivo da visita...
Mais uma vez ela ponderou...
E levou em consideração que futuro e felicidade da relação podiam depender daquele
café.
Ela não só aceitou como disse que prepararia o café. Levantou-se e
dirigiu-se à cozinha. Mas no instante mesmo em que passou por Tertuliano, este lhe
tomou as mãos e depois se levantou para um discreto abraço.
(...)
Logo se afastaram com
sorrisos nos lábios... O rapaz a incentivou a apressar-se garantindo que “daria
uma arrumação ao caos”... O seu intento não era outro senão o de afastá-la o
quanto antes dos papéis comprometedores.
Lá da cozinha, Maria da Paz
respondeu que “O caos é uma ordem por decifrar”... Tertuliano tinha acabado de
esconder suas anotações, mas não pôde refletir sobre os últimos episódios
porque se espantou com a frase da namorada...
Como que sem acreditar
no que ouvira, pediu-lhe que repetisse... Novamente ela disse que “O caos é uma
ordem por decifrar”... Tertuliano quis saber de onde ela tirara um pensamento
daqueles... Acaso ouvira de alguém ou lera?
Não. Maria da Paz garantiu que simplesmente aquilo lhe ocorreu no
momento...
Mas como? Tertuliano ficou intrigado e querendo saber
como uma frase daquelas podia sair de Maria...
Ela perguntou o que havia
de tão especial numa simples frase...
Ele respondeu que havia muito de especial.
Maria da Paz cogitou que talvez fosse o resultado do trabalho no banco
com algarismos em excesso... Quando estão misturados podem confundir e lembrar “elementos
caóticos”... Pobre de quem não os conhece... Mas sabemos que os algarismos
guardam “uma ordem”...
A moça completou seu
raciocínio dizendo que “fora de qualquer ordem os algarismos não têm sentido”.
(...)
Então é isso... Maria da Paz estava apenas se
referindo à ideia de Tertuliano dar “uma arrumação ao caos”... O outro pediu
justificativas para a frase “O caos é uma ordem por decifrar” que ela proferiu
na sequência...
A moça tentou associá-la ao seu cotidiano trabalho com os números...
Tertuliano insistiu que ali não havia números... A moça concordou e
acrescentou que, no entanto, havia o caos, como ele mesmo dissera.
Como que a se justificar, ele disse que havia
apenas “uns quantos vídeos desarrumados”... Era só isso.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_18.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto