sábado, 10 de setembro de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – a caminho do refeitório; encontro com o colega de Matemática; sobre vitórias e derrotas; “andamos a por o tempero de sempre nos pratos do costume”

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_26.html antes de ler esta postagem:

O diretor retirou-se da cadeira...
Aproximou-se de Tertuliano colocando a mão sobre o seu ombro. Estava na hora do almoço e a conversa que tiveram os colocara em sintonia, sendo assim era natural que seguissem juntos para a refeição.
Dessa vez o professor não se sentiu afetado pelo gesto paternalista... A manifestação era natural e transmitia sincero apreço. Bem podia ser que seu “gerador elétrico interno” não estivesse funcionando e por isso não reagiu de modo extravagante como se dera com o colega de Matemática...
O diretor virou-se para organizar alguns objetos e pegar os óculos que seriam metidos no bolso de seu paletó... Tertuliano contemplou mais uma vez o sóbrio ambiente e voltou a pensar que já conhecia tudo aquilo de outro tempo e espaço... Novamente a ideia de que isso se devia às leituras rotineiras surgiu como explicação para a sensação... Então cogitou que “ler também é uma forma de estar lá”...
Era momento de se retirar... O chefe estava pronto... Nesse instante mesmo Tertuliano pressentiu uma “presença invisível” na atmosfera local... Era algo como o que experimentara na noite em que assistira ao “Quem Porfia Mata Caça”... Por acaso pensou que, se tivesse frequentado aquele local antes mesmo de ser professor, aquela sensação momentânea só podia ser resultado da própria memória.
Essas reflexões não tiveram prosseguimento porque logo o diretor o conduziu na direção do refeitório... No caminho o homem repercutiu a última discussão, cogitou a respeito de também as mentiras serem triviais e, nesse caso, se paradoxos impedem que elas sejam esquecidas...
(...)
Tertuliano disse que era provável que o tempo cuidasse de transformar grandes verdades e grandes mentiras em triviais... Completou dizendo que aos poucos tudo se encerra naquilo a que se está acostumado, “os pratos do costume com o tempero de sempre”.
O diretor brincou ao dizer que esperava que aquela metáfora não fosse uma crítica indireta à cozinha escolar. O professor de História respondeu no mesmo tom que frequentava assiduamente o refeitório.
(...)
 Aos poucos outros professores chegaram... O de Matemática veio acompanhado da colega de Inglês... A professora adiantou o passo e se aproximou do diretor... Nesse instante o de Matemática chegou-se ao Tertuliano, perguntou-lhe se estava tudo bem e se havia conversado com o chefe...
Tertuliano respondeu que estava bem... Explicou que o diretor o havia chamado para advertir e orientá-lo a respeito de suas ideias sobre o ensino de História “de pernas para o ar”... Falou brevemente do que tinham conversado e sobre a defesa de seu ponto de vista como sempre fazia... Acrescentou que ao que tudo indicava, dessa vez, o convencera de que suas ideias não eram tão tolas como podiam pensar.
O de Matemática o felicitou... De fato, uma vitória... Tertuliano respondeu que aquilo não serviria para nada... Emendou que todos conhecem a serventia das derrotas.
O de História parecia não alimentar esperanças... Disse que a experiência humana estava repleta de exemplos de fracassos dos que se lançam sinceramente às batalhas carregando sua fé e tudo o que são.
O de Matemática comentou que o colega talvez estivesse cansado do trabalho...
Tertuliano apenas repetiu o que havia dito ao diretor: “andamos a por o tempero de sempre nos pratos do costume”.
O outro quis saber se ele não pretendia deixar a profissão... Tertuliano respondeu que não sabia... Depois disse que talvez fosse uma boa ideia.
O colega voltou à carga... Era isso mesmo? Abandonaria o magistério?
Tertuliano não sabia bem o que pensava ou que queria...
Finalizou dizendo que poderia “abandonar qualquer coisa”.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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