sexta-feira, 9 de setembro de 2016

“O Homem Duplicado”, de José Saramago – na sala dos professores e com a ideia fixa na investigação; o diretor quer orientar Tertuliano a respeito de suas ideias sobre a “decisão séria” que o ministério devia tomar; para os colegas, algo risível

Talvez seja interessante retomar http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_9.html antes de ler esta postagem:

É claro que as quarenta e oito horas do sábado e domingo seriam insuficientes para tanto filme... Mas Tertuliano estava disposto a aproveitar também a noite de sexta-feira... E se mantivesse a regra de não terminar as fitas em que a sua “cópia viva” não aparecesse em nenhum papel até a metade do enredo, daria conta da tarefa antes que a segunda-feira chegasse.
A investigação o levava a conhecer as interpretações do ator secundário... O tipo já aparecera como recepcionista de hotel, caixa de banco e auxiliar de enfermagem... Quem se importava com uma coisa dessas?
Depois de conhecer outras performances, e de dar baixa em nomes que deviam ser eliminados de suas listas para chegar àquele que o identificasse, teria de definir o próximo passo...
Mas isso era algo que o professor já sabia... O próximo passo seria conhecê-lo pessoalmente.
(...)
Tertuliano passou um bom tempo na sala dos professores a folear os jornais e a fazer riscos de caneta sobre certas linhas da seção das artes e dos acontecimentos do mundo do entretenimento em geral... Mais especificamente fixava-se nos títulos de filmes da produtora de seu interesse exibidos pelas salas da cidade... Tinha ao seu lado a fatura da locadora e de vez em quando marcava um ou outro nome nela relacionados.
Como não se tratava de apreciador da sétima arte, não tinha a menor intenção de visitar as salas de cinema... O professor manipulava aquelas páginas dos jornais para manter “foco investigativo”, pois é claro que a quase totalidade dos filmes locados já havia saído de cartaz há um bom tempo...
Estava nesse afazer que em nada tinha a ver com preparo de aulas ou correção de atividades quando entraram anunciando que o diretor solicitava a sua presença em sua sala. Imediatamente desfez-se dos jornais e guardou a fatura na carteira.
(...)
O professor seguiu pela escada que dava acesso ao andar de cima. Caminhou pelo corredor e parou diante da porta do gabinete. Viu a luz verde acesa no alto do portal e anunciou-se com leves toques na madeira. O chefe o autorizou a entrar.
Os dois se cumprimentaram e Tertuliano sentou-se na poltrona indicada pelo superior...
A sala despertava em Tertuliano a impressão de conhecê-la de outro lugar... Talvez de um sonho... Os tapetes davam certa imponência ao ambiente, e o mesmo pode ser dito sobre a ampla escrivaninha, o “cadeirão de pele negra” e as grossas cortinas.
Também podia ser que aquilo tudo soasse tão familiar porque, no conjunto, fosse reprodução fiel de algum ambiente descrito em romance lido por Tertuliano... Talvez representasse uma montagem fiel de gabinete fictício (e por que não real?) de algum diretor de escola...
Quem nunca experimentou esse tipo de sensação?
Não são poucos os que acreditam que episódios como este só podem indicar “uma intersecção entre a sua rotineira vida e o majestoso fluxo circular do eterno retorno”.
Fantasias... É o próprio Saramago que parece colocar ponto final às especulações...
(...)
Tertuliano estava tão mergulhado em seu devaneio que nem percebeu que o diretor estivera a responder-lhe o “como tem passado?”.
O diretor disse que pretendia falar sobre o que Tertuliano havia dito na reunião do dia anterior... Nem mesmo o professor se recordava do que havia dito... O chefe lembrou-o a respeito das ideias referentes ao ensino da História... Mesmo assim ele não tinha certeza do que se tratava e explicou que não tinha dormido bem e sua cabeça estava um tanto confusa.
Estava doente? Tertuliano garantiu que não... Algumas inquietações o incomodavam, mas era apenas isso. Então o diretor disse que o que havia sido dito em reunião estava tudo anotado num papel que ele tinha em mãos. Ele fez a leitura para refrescar a memória do funcionário: “a única decisão séria que será necessário tomar no que respeita ao conhecimento da História é se deveremos ensiná-la de trás para diante ou de diante para trás”...
Tertuliano ressaltou que não havia sido a primeira vez que pronunciara aquelas palavras em reunião... O diretor respondeu que sabia disso, e acrescentou que, de tanto que os colegas ouviam sempre a mesma coisa, começavam a rir logo que ele as iniciava.
Leia: O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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