Depois de finalizar a conversa com a da Paz, Tertuliano sequer conseguia pensar nos motivos que tinha para festejar a conquista de seu intento... Desgastara-se tanto que transpirava copiosamente... Em seu íntimo sabia que tinha acabado de sair de um debate, e que Maria mais uma vez fora vencedora.
A parte que o interessava (a outra autorizou o envio de carta à produtora em seu nome) foi obtida a custa de vários recuos que pareciam táticas para sufocá-lo aos poucos... Por vários momentos ele imaginou que estivesse “encurralando Maria da Paz”, mas conforme conversaram percebeu que era ele quem ficava cada vez mais cercado e sem argumentos.
Tertuliano se sentia aliviado após o fim da conversa com Maria da Paz... Mas ele sabia que o relacionamento se tornava ainda mais insuportável. O que esperar das próximas ocasiões?
(...)
Definitivamente estava perdendo o controle... Desde
que a conhecera procurou mantê-la à distância em relação à sua vida particular.
Depois de seis meses chegava o momento da separação, mas nada podia fazer nesse
sentido porque se viu na necessidade de pedir o seu auxílio no imbróglio que só
a ele pertencia.
Ele sabia que o Senso Comum apareceria para jogar-lhe na cara que suas
iniciativas eram as de um aproveitador... Já tinha uma resposta pronta também
para isso... Poderia fazer diferente? Que culpa tinha se soubera que vivia a
inusitada condição de duplicado? Teria de “inventar” procedimentos que o
levasse a uma explicação...
A ideia da carta foi providencial... Não podia se
culpar pelo fato de “abusar da confiança” de Maria... Ela o amava... Havia quem
fizesse coisas muito piores e nem por isso eram execrados publicamente.
(...)
Não podia perder tempo com essas ilações... Por isso colocou uma folha
na máquina de escrever e pôs-se a pensar.
Pelo menos sabia que devia elaborar um “texto de admiradora”... Não
podia exagerar em bajulações porque o ator não era nenhum astro reconhecido
pela crítica especializada... Pediria uma fotografia autografada... Talvez o
nome verdadeiro do tipo nem fosse Daniel Santa-Clara! O mais importante era
obter o telefone, talvez seu endereço...Isso era ousado...
Mas era
preciso tentar.
O que poderia ocorrer? Talvez a produtora respondesse às perguntas da
fã... Talvez enviasse carta lamentando o fato de não poder fornecer as
informações solicitadas... Também podia ocorrer de encaminhar a carta
diretamente ao seu destinatário.
Essa última possibilidade foi a que Tertuliano menos considerou... Se a
produtora assim agisse era porque não levava em consideração a vida já
sobrecarregada de seus atores... Era bem provável que o próprio escritório
cuidasse desses casos... Fotografias previamente autografadas deviam estar à
disposição para esse tipo de eventualidade.
(...)
A elaboração da carta não
foi nada fácil...
Mais de uma hora se passou
desde que a máquina foi acionada... Provavelmente a vizinha do andar de cima tivesse
se incomodado com o barulho...
Num determinado momento o telefone tocou... Mas
Tertuliano estava tão concentrado no que fazia que sequer deu atenção ao
aparelho.
(...)
A noite de sono não
foi das mais tranquilas... Os sonhos que chegaram o deixaram perturbado...
Num deles, a reunião do
conselho estava esvaziada porque os docentes não compareceram... De repente surgiu
um corredor sem saída... Depois se viu tentando colocar uma fita de vídeo no
aparelho que a enjeitava... Numa sala de cinema o projetor exibia a mais pura
escuridão... Também uma lista telefônica apareceu em suas mãos e a página que
estava aberta exibia apenas um nome de cima até embaixo, mas ele não conseguia
ler...
Noutro fragmento de sonho,
recebia na porta de casa uma caixa contendo um peixe... Também apareceu um tipo
que carregava uma pedra nas costas e anunciava que era um amorreu.
Depois de acordar
lembrou-se mais ou menos dos sonhos.
Pensou que aquele da caixa que chegava à porta
de sua casa não trazia um tamboril... Não podia ser porque a caixa não era das grandes.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago_27.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto