É claro que Tertuliano não tinha a menor condição de dizer uma palavra a respeito do filme que acabara de rodar em seu aparelho de vídeo... Sabemos que ele não era daqueles que se interessam pelo cinema... E muito menos apreciaria uma produção como aquele “Um Homem como Qualquer Outro”, típico “filme B”, um fracasso de bilheteria destinado a entreter os que não desejam “incomodar o espírito”...
Aliás, todos os filmes que chegaram às mãos do professor de História podiam ser classificados do mesmo modo... Eram medíocres mesmo.
(...)
O sacrifício fazia parte de
sua determinação...
O filme seguinte foi “A Vida Alegre”...
Sem entrar em maiores
detalhes, devemos destacar que, neste, a “cópia fiel” de Tertuliano apareceu...
O tipo fazia o papel de porteiro de cabaré. Talvez fosse melhor chamar ao
estabelecimento mundano de boate...
Não faz sentido perdermos tempo com análises desse gênero... O filme
também era muito ruim... Pode-se dizer que o resultado era uma péssima
referência à “Viúva Alegre”.
Estava claro que a fita cumpriu o seu papel no projeto
de Tertuliano. Ele já sabia que o tipo participou da filmagem, então bastava
avançar o rolo até os créditos e fazer os registros ou extrair os nomes que
constavam de listas anteriores e que não apareciam neste “A Vida Alegre”.
Mesmo assim, decidiu assistir até o fim. Em seu íntimo notava uma
espécie de compaixão pelo ator que aparecia abrindo ou fechando porta de
carros... O tipo também levantava e baixava o boné sinalizando cumprimentos aos
frequentadores da espelunca... Sem dúvida, uma péssima colocação como todas as
outras que desempenhara nos filmes anteriores.
Ocorreu a Tertuliano comparar a sua condição profissional e social com a
do “seu igual”... Concluiu que, dados os insignificantes papéis a que o outro
se submetia, podia se gabar de sua “superioridade”.
(...)
O Senso Comum apareceu.
Comentou que o amigo devia ter mais cuidado com a soberba... Afinal, ele
poderia ser ”outra coisa” além de professor? Bem podia ser que perdia muito por
não ser como o outro.
Também era certo que não se
tratava de uma questão de, de repente, sair por aí atuando... Possuía talento?
E isso não é tudo! Será que ele imaginava que o aceitariam apresentando-se com
o nome de batismo?
Tertuliano respondeu que “Máximo
Afonso” não estaria mal... Então não precisaria arranjar nenhum nome com mais “apelo
artístico”.
O professor dizia
essas coisas ao mesmo tempo em que guardava “A Vida Alegre” na embalagem...
(...)
O próximo filme foi o sugestivo “Diz-me Quem És”.
Sobre este, convém dizer
que em nada alterou a opinião de Tertuliano a respeito de si mesmo ou sobre o
ator secundário... Assistiu-o até o final e procedeu às marcas já costumeiras
na lista... Assim ia eliminando nomes e animava-se com a ideia de que logo sua
tarefa estaria completa.
Verificou o adiantado da hora e calculou que o mais
razoável seria retirar-se para a cama... Seus olhos estavam cansados... Os
ossos doíam-lhe demais. Pensou que não precisava se acabar na tentativa de
assistir à enormidade de fitas no mesmo fim de semana...
Ingeriu um comprimido e deitou-se... Nenhum sono avassalador o
dominou... Então não demorou a entrar em reflexões sobre outro procedimento que
poderia adotar sem ter de se submeter a tantas horas de filmes ridículos.
Seus pensamentos se agitaram com a possibilidade de
visitar o escritório da produtora para perguntar sobre o ator que fazia papéis
secundários nos filmes da empresa... Podia citar os papéis de “empregado de
recepção, caixa de banco, auxiliar de enfermagem e porteiro de boate”...
Chegou ao ponto de imaginar que a ideia era das melhores... Até porque
os funcionários deviam estar acostumados a receber esse tipo visita... É claro
que normalmente deviam procurar os mais graduados artistas... Mas certamente
não se importariam de ter de responder a respeito de um secundário
(secundaríssimo!).
Porém, quando estava para mergulhar no sono, sentenciou que não mudaria
a estratégia porque a visita ao escritório da produtora era algo muito
simples... Seu projeto inicial tinha muito a ver com a sua formação...
Estudara História... Era um verdadeiro investigador...
Essa conclusão tem muito de
soberba... Mas nem podemos culpá-lo por isso.
Seu delírio devia-se ao efeito do comprimido que
o apagava aos poucos.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2016/09/o-homem-duplicado-de-jose-saramago-tres.html
Leia: O
Homem Duplicado. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto