Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/11/1984-de-george-orwell-dos-ultimos.html antes
de ler esta postagem:
Como que a confirmar a atmosfera de segurança e
sossego do momento, desde o quintal vizinho ouvia-se a voz da proletária a
cantar enquanto lidava com os panos que podiam ser fraudas das crianças de sua
família...
"Foi apenas uma
fantasia desesperada; Que passou como um dia de abril; Mas um olhar, uma
palavra, e os sonhos provocados; Roubaram o meu coração gentil!"
Winston pensou que apesar da massacrante “Semana de Ódio” carregada de
marchas que tomavam conta das ruas, a “cantiga pueril” ainda era a preferida
entre os “proles”.
E
tão animadamente a mulher cantou que Júlia acabou despertando. Levantou-se e já
foi se queixando da fome... Decidiu que faria café e protestou ao notar que o
fogareiro estava apagado e a que água havia esfriado. Sacudiu o velho utensílio
e notou que ele estava sem óleo. Winston sugeriu que talvez Charrington lhes
arranjasse um pouco.
A moça observou que
havia verificado anteriormente que estava cheio... Sem dar maior importância à
adversidade, decidiu vestir-se, pois reconheceu que a temperatura havia caído
consideravelmente.
Winston
resolveu que devia vestir-se também, e enquanto se arrumava ouvia a cantoria da
mulher em sua dedicada disposição junto ao varal:
"Dizem que o tempo
tudo cura; Dizem que sempre se pode esquecer;
Mas os sorrisos e lágrimas anos a fio; Ainda fazem meu coração sofrer."
Mas os sorrisos e lágrimas anos a fio; Ainda fazem meu coração sofrer."
(...)
Ele não resistiu e se
dirigiu à janela... Notou que já não havia luz solar incidindo sobre o quintal
e que o piso de paralelepípedos parecia lavado assim como o pálido firmamento
azul.
A brisa carregava um doce frescor ao qual a mulher parecia
indiferente... Sem interrupções, ela caminhava de um lado para outro com os
panos e prendedores. Interrompia a cantoria quando os tinha à boca e voltava a
cantar logo que os prendia nas fraldas. Winston calculou que ela talvez fosse
lavadeira e que vivia das encomendas da vizinhança. Mas não seria improvável se
todo aquele serviço “de escrava” se devesse aos seus “vinte ou trinta netos”.
Júlia se aproximou e o acompanhou na observação à mulher. Pode-se dizer
que a olhavam fascinados por seu porte avantajado de proletária. Winston
prestou atenção às atitudes e a cada detalhe: “os braços grossos alcançando o
varal, as ancas muito salientes, fortes, como as de uma égua”. Achou-a bonita e
pensou que de outras vezes não a reparara bem... Achou que não levara em
consideração que aquele tipo de avançada idade, tão maltratado por sucessivos
partos, incessantes trabalhos domésticos, e provavelmente por prolongadas
jornadas em alguma fábrica, pudesse irradiar beleza.
Por fim refletiu que estivera errado e
considerou metaforicamente que a mesma graça que contemplamos numa “rosa de
jardim” pode se esconder num “fruto de rosa brava”. Pensou sobre isso e
transferiu o raciocínio para a imagem que tinha de Júlia comparada à da
proletária de corpo “sem contornos” e pele enrijecida... De modo algum seria
correto considerar o fruto “inferior à flor”!
Depois de algum
tempo, o rapaz deixou escapar que achava a vizinha bonita... Júlia exclamou que
ela tinha “um metro de diâmetro nas cadeiras”. Ele respondeu que aquele era “o
estilo de beleza” da outra. Disse isso e abraçou a cintura da namorada.
A proximidade dos corpos levou Winston a pensar sobre a impossibilidade de
terem filhos... Os dois sabiam que jamais gerariam outra vida e sequer
trocariam palavras a respeito. Ele voltou a olhar para a proletária do quintal
vizinho e ainda em seu exercício de comparação, a imaginou um tipo dotado de
braços fortes, mas sem mente. Certamente devia ter “coração quente e ventre
fértil”.
Quantos
filhos a mulher teria gerado? Ele pensou que uns quinze, talvez mais... Bem
podia ser que, em algum longínquo momento, ela experimentasse sua fase de “beleza
de rosa brava”, algo que teria durado um ano e nada mais... Depois se tornara
inchada “como um fruto fertilizado”, sua pele enrijecera sob o sol das
infindáveis tarefas junto ao tanque e o varal. Isso sem contar os muitos
afazeres da cozinha, da limpeza da casa e dos cuidados com as crianças... Mais
de trinta anos de devoção aos filhos, depois aos netos... Ela continuava a
levar a mesma vida, no entanto jamais deixara de cantar enquanto labutava.
(...)
Todo o respeito que
Winston percebia nutrir pela desconhecida era embalado pela atmosfera marcada
pelo céu que se escurecia e parecia crescer para além das chaminés das casas...
Não havia nuvens e o firmamento dilatava-se para ainda mais além, indicando “distâncias
intermináveis”.
O
céu que podiam contemplar era o mesmo que abrigava os demais povos da Eurásia e
da Lestásia.
Em
suas reflexões, Winston calculou que, por mais que o regime insistisse em
negar, eles tinham mais coisas em comum do que se poderia pensar.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto