domingo, 14 de novembro de 2021

“1984”, de George Orwell - fim da tarde embalado pela cantoria da vizinha proletária em sua interminável tarefa junto ao varal carregado de fraudas; Júlia desperta e estranha a falta de óleo no fogareiro; Winston admira a beleza diferenciada da vizinha; um céu sombrio, o mesmo que abrigava os demais povos

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/11/1984-de-george-orwell-dos-ultimos.html antes de ler esta postagem:

Como que a confirmar a atmosfera de segurança e sossego do momento, desde o quintal vizinho ouvia-se a voz da proletária a cantar enquanto lidava com os panos que podiam ser fraudas das crianças de sua família...

                   "Foi apenas uma fantasia desesperada; Que passou como um dia de abril; Mas um olhar, uma palavra, e os sonhos provocados; Roubaram o meu coração gentil!"

Winston pensou que apesar da massacrante “Semana de Ódio” carregada de marchas que tomavam conta das ruas, a “cantiga pueril” ainda era a preferida entre os “proles”.
E tão animadamente a mulher cantou que Júlia acabou despertando. Levantou-se e já foi se queixando da fome... Decidiu que faria café e protestou ao notar que o fogareiro estava apagado e a que água havia esfriado. Sacudiu o velho utensílio e notou que ele estava sem óleo. Winston sugeriu que talvez Charrington lhes arranjasse um pouco.
A moça observou que havia verificado anteriormente que estava cheio... Sem dar maior importância à adversidade, decidiu vestir-se, pois reconheceu que a temperatura havia caído consideravelmente.
Winston resolveu que devia vestir-se também, e enquanto se arrumava ouvia a cantoria da mulher em sua dedicada disposição junto ao varal:

                   "Dizem que o tempo tudo cura; Dizem que sempre se pode esquecer;
Mas os sorrisos e lágrimas anos a fio; Ainda fazem meu coração sofrer."

(...)
Ele não resistiu e se dirigiu à janela... Notou que já não havia luz solar incidindo sobre o quintal e que o piso de paralelepípedos parecia lavado assim como o pálido firmamento azul.
A brisa carregava um doce frescor ao qual a mulher parecia indiferente... Sem interrupções, ela caminhava de um lado para outro com os panos e prendedores. Interrompia a cantoria quando os tinha à boca e voltava a cantar logo que os prendia nas fraldas. Winston calculou que ela talvez fosse lavadeira e que vivia das encomendas da vizinhança. Mas não seria improvável se todo aquele serviço “de escrava” se devesse aos seus “vinte ou trinta netos”.
Júlia se aproximou e o acompanhou na observação à mulher. Pode-se dizer que a olhavam fascinados por seu porte avantajado de proletária. Winston prestou atenção às atitudes e a cada detalhe: “os braços grossos alcançando o varal, as ancas muito salientes, fortes, como as de uma égua”. Achou-a bonita e pensou que de outras vezes não a reparara bem... Achou que não levara em consideração que aquele tipo de avançada idade, tão maltratado por sucessivos partos, incessantes trabalhos domésticos, e provavelmente por prolongadas jornadas em alguma fábrica, pudesse irradiar beleza.
Por fim refletiu que estivera errado e considerou metaforicamente que a mesma graça que contemplamos numa “rosa de jardim” pode se esconder num “fruto de rosa brava”. Pensou sobre isso e transferiu o raciocínio para a imagem que tinha de Júlia comparada à da proletária de corpo “sem contornos” e pele enrijecida... De modo algum seria correto considerar o fruto “inferior à flor”!
Depois de algum tempo, o rapaz deixou escapar que achava a vizinha bonita... Júlia exclamou que ela tinha “um metro de diâmetro nas cadeiras”. Ele respondeu que aquele era “o estilo de beleza” da outra. Disse isso e abraçou a cintura da namorada.
A proximidade dos corpos levou Winston a pensar sobre a impossibilidade de terem filhos... Os dois sabiam que jamais gerariam outra vida e sequer trocariam palavras a respeito. Ele voltou a olhar para a proletária do quintal vizinho e ainda em seu exercício de comparação, a imaginou um tipo dotado de braços fortes, mas sem mente. Certamente devia ter “coração quente e ventre fértil”.
Quantos filhos a mulher teria gerado? Ele pensou que uns quinze, talvez mais... Bem podia ser que, em algum longínquo momento, ela experimentasse sua fase de “beleza de rosa brava”, algo que teria durado um ano e nada mais... Depois se tornara inchada “como um fruto fertilizado”, sua pele enrijecera sob o sol das infindáveis tarefas junto ao tanque e o varal. Isso sem contar os muitos afazeres da cozinha, da limpeza da casa e dos cuidados com as crianças... Mais de trinta anos de devoção aos filhos, depois aos netos... Ela continuava a levar a mesma vida, no entanto jamais deixara de cantar enquanto labutava.
(...)
Todo o respeito que Winston percebia nutrir pela desconhecida era embalado pela atmosfera marcada pelo céu que se escurecia e parecia crescer para além das chaminés das casas... Não havia nuvens e o firmamento dilatava-se para ainda mais além, indicando “distâncias intermináveis”.
O céu que podiam contemplar era o mesmo que abrigava os demais povos da Eurásia e da Lestásia.
Em suas reflexões, Winston calculou que, por mais que o regime insistisse em negar, eles tinham mais coisas em comum do que se poderia pensar.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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