sexta-feira, 26 de novembro de 2021

“1984”, de George Orwell - a prisão e seu universo de ilicitudes e decadência humana; uma mulher de sessenta anos atirada sobre o colo de Winston, seu péssimo estado e simpatia pelo estranho; aquela bem podia ser sua mãe; os pavores dos presos políticos encarcerados; necessidade de não pensar em Júlia; a imagem de O’Brien trazia esperança e talvez lhe chegasse uma lâmina de barba às mãos; talvez fosse melhor prosseguir existindo e “aceitar mais dez minutos de vida”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/11/1984-de-george-orwell-charrington.html antes de ler esta postagem:

Obviamente Winston não podia ter a menor ideia a respeito do submundo dos presídios... Subornos, “favoritismo e roubalheira de todo gênero”, além das práticas homossexuais e da prostituição.
Ficaria escandalizado ao saber que os detentos que quisessem podiam obter destilados de batatas ilícitos, e não era por acaso que certas funções que demandavam a confiança dos agentes de segurança fossem destinadas somente aos presos comuns que tinham vínculos com grupos criminosos e relações com assassinatos... Os demais os viam como “aristocratas”, enquanto aos presos por razões políticas sobravam tarefas “menos prestigiosas” e relacionadas à faxina.
O pouco tempo de permanência na detenção transitória foi suficiente para Winston reconhecer que por ali passavam criminosos de todas as modalidades imagináveis: “vendedores de entorpecentes, ladrões, bandidos, traficantes, bêbados, prostitutas”. Entre os bêbados encontravam-se os mais violentos, e alguns eram tão agitados que os demais se juntavam para controlá-los.
(...)
Num determinado momento os agentes chegaram com uma mulher que devia contar uns sessenta anos. O seu tipo lembrava o de uma velha prostituta de avantajados seios, cabelos esbranquiçados e despenteados... Ela deu muito trabalho aos tiras, já que resistiu à detenção com pontapés e gritaria.
Depois que arrancaram as botas da delinquente, a jogaram no colo de Winston e seu peso quase o machucou gravemente. No mesmo instante ela os ofendeu com palavrões, mas eles se retiraram sem perda de tempo.
Nem se pode dizer que a mulher tivesse percebido que estava no colo de um estranho... Ao se dar conta da situação, escapou para o lado acomodando-se no mesmo banco. Ela pediu desculpas ao Winston chamando-o “queridinho” e justificando que os “policiais sacanas” a atiraram sobre ele.
Talvez tenha considerado que o rapaz fosse mais distinto do que os de sua convivência já que emendou que os agentes não sabiam tratar uma senhora... Na sequência deixou escapar um arroto escandaloso, explicou que era da opinião de que não se deve “segurar a vontade” e novamente pediu desculpas. Vomitou, despejando um volume asqueroso no chão e disse que não se sentia bem, mas que “ter soltado tudo enquanto está fresco no estômago” era o melhor para os casos como o dela.
Voltando-se para Winston, mostrou que havia se simpatizado por ele e o envolveu com o seu braço avantajado puxando-o para mais perto. O vapor da cerveja barata e do vômito o inebriou enquanto ela procurava sua identificação estampada na roupa... Ao constatar que ele era um Smith, comentou que esse também era o seu nome de família e que o mais engraçado é que ela bem podia ser sua mãe.
Winston tinha muito em que pensar, mas por um instante considerou que não seria impossível que aquilo fosse verdade... A mulher tinha idade e físico que condiziam com as prováveis características da mãe. É certo que se estivesse viva teria mudado muito, e isso sem contar os trabalhos forçados a que fora submetida, mas a sugestão da outra o incomodou por um instante.
(...)
A indisposição de ambos para uma conversa mais séria colocou fim na falação da mulher e depois disso ninguém mais se dirigiu a ele.
Os detentos relacionados aos crimes comuns nem faziam caso da presença dos presos políticos, os tratavam por “politiqueiros” e não tinham qualquer interesse por eles. De qualquer modo, o pessoal que pertencia ao Partido estava bem assustado e sem qualquer intenção de conversar com quem quer que fosse, evitando principalmente os “companheiros de infortúnio”.
Num determinado momento, duas que pertenciam ao Partido Externo cochicharam algo a respeito de certa sala “um-zero-um”. Winston ouviu sem conseguir relacionar a informação a qualquer contexto. Sentia que já estava há um bom tempo no cárcere provisório, mas na verdade haviam se passado umas três horas apenas. A fome e a dor de barriga o incomodavam... Essas desagradáveis sensações interferiam nos pensamentos. Nos momentos de dor mais aguda avaliava que precisava comer urgentemente, e isso lhe ocupava a mente. Quando a dor diminuía, enchia-se de pavor e expectativa pelo que estava por vir.
A tal ponto se apavorava que notava o coração disparar ao mesmo tempo em que lhe faltava a respiração. Imaginava-se apanhando das forças de repressão, dentes quebrados e ele rolando pelo chão a pedir misericórdia. Não pensava em Júlia, embora de vez em quando sua imagem aparecesse em suas reflexões... Entendia que não podia pensar nela, apesar de manter-se convicto de que a amava e que jamais a trairia... Encarava a situação como paradoxal, já que “não sentia amor por ela e quase não tinha vontade de saber o que lhe estava acontecendo”.
(...)
O’Brien é que lhe vinha aos pensamentos com maior frequência. Encarava isso como “um raio de esperança”. Imaginava que ele já devia saber que o casal havia sido capturado. Winston não se esquecia de suas palavras a respeito de a “Fraternidade” não se mobilizar em socorro aos membros que caíam nas garras da Polícia do Pensamento... Lembrou-se da “lâmina de barba” e imaginou que talvez lhe entregassem uma às escondidas.
A esse respeito, imaginou que talvez pudesse fazer uso da lâmina quando o levassem para as grades. Imaginou-se cortando o pulso até os ossos... A dor que aquilo provocaria seria tanta que duvidava da própria intenção de chegar ao ato extremo. Talvez nem tivesse tempo ou ocasião para cortar-se devidamente. Talvez fosse melhor aguardar e “existir de momento a momento” e “aceitar mais dez minutos de vida mesmo com a certeza de mais tortura”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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